segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Carta aberta a Deus

Escrevo-te porque não existes. Afinal, o Pai Natal não existe e as crianças escrevem-lhe e perante ele se comprometem a ter um comportamento exemplar a troco de presentes e promessas de felicidade, sejam estes tangíveis ou não. Tu próprio és às vezes representado com profusas barbas brancas em certas ideossincrasias que com certeza não aprovarias, pois a figuração é uma limitação da eternidade que, por ser eterna, não se subordina ao domínio de Cronos: não conhece infâncias, adolescências, adultícias nem velhices. Não nos conseguimos descentrar do antropomorfismo em que nos impomos como referência incontornável (até os extraterrestres são morfologicamente representados com olhos, dedos, membros inferiores, orifícios sensoriais, todo um aparato orgânico onde também cabem as alergias e as substâncias que lhes são letais; e psicologicamente até têm aversões, dissonâncias cognitivas, fraquezas, ambições e os demais estados de ânimo que lhes conferem uma personalidade afável ou ameaçadora).
Escrevo-te porque não existes. Se existisses, nenhuma linha escrita no passado, por mãos esquizofrénicas, dementes, crédulas, amedrontadas e supersticiosas dos profetas e afins arautos e porta-vozes do delírio, faria sentido... A beleza das escrituras bíblicas, corânicas e de outras sagrações avulsas é a ficção romântica e o drama trágico de sucessivas impossibilidades materiais que, como contos de fadas, só têm concretude na esperança de um devir que, quanto mais próximo e iminente, mais adiável e atópico se revela. Nutres a tua força e poder de sugestão no desespero, na contingência, no fracasso, na ilusão, na mentira, nos despojos da razão e na desolação que se consolidam na finitude da morte. Se as autoridades deixassem de andar armadas e de estar investidas do poder sancionatório, deixaríamos de lhes obedecer. Assim aconteceria contigo. És por isso a fonte do medo e da cólera, rastilho de incontáveis fundamentalismos que apoiaste com a teu ignóbil passividade, a tua fria indiferença, o teu imutável silêncio. Como seria mais pacífico o mundo sem ti...
Escrevo-te porque não existes. Mesmo sob os mais diversos disfarces com que te apresentas, sejas Shiva, Zeus, Yaweh, Allah ou outro qualquer dos pseudónimos com que a desorientada imaginação onomástica te nomeie, mesmo assim não existes. Tal como as baterias, pilhas e geradores, também a fé é a energia que se esgotará um dia, nem que isso ocorra simultaneamente com a extinção da massa da grande estrela solar. Tem valor o que pouco dura, o instante fugaz, o fragmento isolado, o momento episódico. Depois disso sempre vem a inexorável insatisfação que constitui o impulso para continuar a prossecução de objectivos - a vida é um jogo que não se ganha nunca, sem vencedores, por mais pontos que se acumulem e por mais estratégias que se esbocem. À tua imagem e semelhança somos os derrotados de Tanatos na tua caixa de Pandora. A tua bondade é a tua maldade, é a violência e a ira com que sempre acabas por tirar o que dizes dar; a água mata a sede e mata por afogamento, o fogo aquece e carboniza, o ar oxigena e adoece até à sufocação, a terra sustenta e sustem e é coveira devoradora e abalo. O verso e o reverso, o yin e o yang, a cara e a coroa, a vida e a morte - as díades implacáveis com que em contradição te manifestas e em permanência demonstras a tua epifania miserável e perversa.
Escrevo-te porque não existes. Nem endereço ou apartado possuis, conforme atestado pelo conhecimento que em linguagem humana vamos obtendo e com o qual já rivalizamos contigo no poder criador e destruidor que humano também é. Nem mil satélites perscrutam qualquer indício de morada ou habitação tua, das proximidades da Terra aos confins indeterminados do universo; nem microscópios nem telescópios te dão visibilidade, cor, forma, altura, largura, profundidade ou textura. Não tens Lapónias terrenas onde residas. Se és invisível aos olhos de uma amiba, como poderias ter tu existência?
Escrevo-te porque não existes. Falas do mesmo modo do mesmo medo, sem variações ou intermitências. Não tens por isso originalidade nem te ajustas aos específicos contextos históricos, culturais, sociais e políticos; por isso vais perdendo fiéis e as tuas ancestrais mensagens e os teus obsoletos recados vão estando sujeitos à entropia que os deturpa, manipula, adultera e torna exangues. Reconhece que falhaste e perdeste, porque, se existisses, não terias podido perder nem falhar. Daí que se diz teres insondáveis desígnios - como se confunde ignorância e impotência com arbitrariedade... Se pés tivesses, seriam modelados pelo empenho e engenho dos oleiros para reproduzir o motivo da tua milenar imobilidade e imobilismo. «O mundo pula e avança» mas tu não sais do mesmo inóspito pedestal; contaminas os lugares em que te circunscreves com rituais ocos e ladaínhas inócuas; também tu és déspota e alimentas o engano da exploração do homem pelo homem, o que é de César é igualmente teu. Não te bastava consumir o que de mais importante o ser vivo tem, e ainda vendes a banha da cobra e não repudias o vil metal da tua celebração nem a abnegação dos sacrifícios vãos, dás falsa protecção e, no fim de contas, é em pó que indiferentemente transformas os que em ti investem. Mas isso eu percebo, porque és o tudo que afinal é nada e por isso estamos irmanados contigo na inevitabilidade do não-ser.
E é por isso que te escrevo. Porque serás sempre a mera sombra da virtual esperança. Quando ao morrer eu me consubstanciar a ti, continuarás acobardada na impossibilidade de encetar o mais sumário diálogo, porque aí, à tua imagem e semelhança, eu não terei então voz para falar nem circuitos nervosos para argumentar. Por isso te negamos em cada dia que vivemos; viver é sermos o teu avesso, é sermos deuses de vida e tu serás sempre sombra pálida e mortiça, és deus de morte e nas tuas mãos tens os sulcos profundos da gadanha que empunhas e te acompanha desde o Éden, desde que tens memória de ti. Mesmo aí descansa, pois no homem tens agora par: podias ter parado a tua obra da criação ao quinto dia, e só a tua vontade de adoração e culto, só a tua vaidade - sim, és um deus fátuo! - te levou a insuflar o pó da terra e a produzir o único vivente que é hostil a tudo o que criaste e que hoje concorre contigo. O escravo revoltou-se e é agora o senhor, o parasita, que desperdiça e esbanja o que conquistou, que não respeitou os teus direitos de propriedade, se existisses e os tivesses. Como pudeste ser tão desleixado e negligente na tua imperfeição? Se existisses, não o serias, pois terias que te coadunar com o inefável e ambíguo mistério da perfeição. O teu sopro revelou o teu hálito putrefacto de febre, malícia e sarna... És a má arte com que muitos pretendem reinventar a vida.
Esta epístola é o esquife com que te amaldiçoo, é o limite a que estás confinado. Sim, porque esta é uma missiva que não existe, pois uma missiva só existe quando é lida pelo destinatário. Nem tenhas a presunção e a arrogância, tão habituais e típicas em ti, de a confundir com uma oração! As tuas fórmulas não têm a eficácia nem o rigor dos sinais matemáticos e só se conjugam nos pretéritos verbais. És o que nunca chegaste a ser: uma promessa protelada de redenção e, como tal, não existes, pelo menos do lado de dentro da vida, a cujo lugar não pertences e em cujo lugar a omnisciência e omnipotência da tua suposta perfeição não passam de humanas possibilidades teóricas.
Subscrever-me-ia com amizade e frequentemente renová-la-ia. Porém, isto não é uma carta mas o monólogo sem correspondente que lhe responda. Faz como sempre fizeste e não abandones o teu cárcere nihilista que, da nossa parte e sem o sabermos, mimeticamente continuaremos a acompanhar-te.
Sinceramente, António Louro Miguel

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Respondendo à tua "carta aberta",só te digo que muitos Padres começaram assim. Relatos conhecidos demonstram que pessoas anteriormente desprovidas de Fé e de "Sentido de Vida" se vieram a converter, numa actitude que nem eles conseguem explicar... Porque a Fé não se aprende nem se explica... Sente-se... Todos estamos numa caminhada para encontrar a nossa Fé... Uns já chegaram ao fim do caminho... Outros ainda percorrem sinuosas montanhas e ainda têm um demorado caminho pela frente... E tu? Quo Vadis?


E não te preocupes, Ele não ficou zangado com o que Lhe disseste.

Abraço =)

10:43 da tarde  

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