quinta-feira, dezembro 14, 2006

O amigo americano

Quem tem amigos destes, não precisa de inimigos. Este é o aforismo que tão bem caracteriza e define o modo como os Estados Unidos se impõem arrogantemente ao resto do mundo, sobretudo após o desmoronar do bloco soviético. E são inúmeros os exemplos, ao longo da história recente, de prepotência e arbitrariedade com que a política externa estadunidense exerce a sua dominação e coerciva influência.
A nível interno, é fácil constatar o gradual colapso dos "american way of life" e "american dream", construído e alicerçado sobre um capitalismo selvagem e uma economia de mercado patrocinada por um proteccionismo de Estado que desvirtua a essência de uma competição económica justa e igualitária. Tal paradigma reduziu a cacos as tímidas políticas sociais que ainda subsistiam. Aliás, não é de estranhar a afirmação de uma prima da Secretária de Estado Connie Rice (citada por Peter Stothard no The Times, há uns quatro meses), em que diz que "ainda metemos os rapazes pobres nas cadeias pelas mesmas razões por que damos apoio psicológico aos rapazes de classe média". A própria origem sócio-económica dos soldados dos EUA que estão no Iraque desfaz as dúvidas quanto à persistente e incessante discriminação social no interior dos states.
A nível externo, o que se passa no Iraque ou no conflito israelo-palestino são apenas dois exemplos dos muitos com que o polícia do mundo tem vindo a minar os fundamentos de uma harmoniosa, justa e pacífica ordem mundial. Graças a Bush e seus três antecessores, o mundo está hoje bem mais perigoso e a pax americana nunca foi antes questionada com o vigor actual, pelos seus aliados e não só, ao ponto de se fazerem sentir já efeitos práticos disso, designadamente na América Latina, tradicional quintal dos EUA: recentes eleições alimentaram um demagógico populismo reactivo e reforçaram a demarcação do vizinho do norte por parte da Venezuela, Equador, Bolívia, Nicarágua, Chile e Brasil (embora os dois últimos mais moderadamente). Cuba deixou de estar isolada...
Finalmente, e como remate desta dissertação, lembro as palavras de Smedeley Darlington Butler, general norte-americano que, num excerto da sua autobiografia traduzida há cerca de onze anos pelo Le Monde Diplomatique, escreveu:
"Passei 33 anos e quatro meses em serviço activo na força militar de maior mobilidade do nosso país: o corpo de marines. Ocupei todos os postos de oficial, de alferes a general de divisão, e durante esse período consagrei a maior parte do meu tempo a servir o grande capital, Wall Street e os banqueiros, como homem de mão de alto gabarito. Resumindo, fui um malfeitor a soldo do capitalismo. Foi assim que contribuí, em 1914, para fazer do México (...) um lugar seguro para os interesses petrolíferos americanos. Ajudei o Haiti e Cuba a tornarem-se lugares suficientemente respeitáveis para que os homens do National City Bank fossem lá ganhar dinheiro. Em 1901-1912, na Nicarágua, participei na depuração em benefício do banco internacional Brown Brothers. Em 1916, fiz chegar a luz à República Dominicana por conta dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1913, criei as condições para que as Honduras acolhessem as companhias frutícolas dos Estados Unidos. Na China, em 1927, velei para que a Standard Oil se pudesse ocupar das suas actividades sem ser importunada. (...) [Al Capone] apenas podia praticar o seu banditismo em três bairros da cidade, enquanto nós, os marines, operávamos em três continentes."
Parece que, infelizmente, o oportunista amigo americano resiste à prova do tempo e teima em continuar nesses e noutros palcos e cenários, dos quais depende a exibição pública da sua hegemonia. As palavras do general Butler não perderam, portanto, actualidade. Até quando?
É que, com amigos destes, quem precisa de inimigos?

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