A montanha foi a Maomé
A sucessão de episódios do confronto civilizacional entre Ocidente e Oriente não pára de nos surpreender. Não me refiro à vitória inesperada do Hamas na Palestina, mas sim à publicação irresponsável e infeliz de uma dúzia de cartunes alusivos ao profeta Maomé feitos com o propósito deliberado de «desafiar, blasfemar e humilhar» o credo maometano, num claro abuso do direito de liberdade de expressão indiciador de uma atitude etnocêntrica e xenófoba. Um impronunciável jornal dinamarquês deu à estampa caricaturas fortemente depreciativas da personagem fundadora de uma das maiores religiões monoteístas, insinuando anacronicamente através delas, e isso é que é grave, que Maomé é responsável, mesmo que apenas moral, pelo terrorismo islâmico.
[Há três anos, o pasquim em apreço recusou publicar caricaturas realizadas por Christoffer Zieler sobre a ressurreição de Jesus, alegando serem ofensivas e sem piada!...]
Ninguém com bom senso e tolerante porá em causa o princípio de que a liberdade individual de opinião e de expressão é essencial e inalienável em qualquer sociedade que preze o progresso moral. Porém, o exercício efectivo e pleno da liberdade está associado ao exercício efectivo e pleno da responsabilidade, mormente se em causa está a salutar coexistência multiétnica, tão cara às sociedades contemporâneas marcadas pela rápida evolução dos transportes, das telecomunicações e da tecnologia em geral, o que acelera exponencialmente a mobilidade humana e assim incrementa o fenómeno migratório, uma das mais visíveis expressões dessa evolução.
O desenho caricatural é um instrumento privilegiado e artisticamente inteligente de promover através do humor as capacidades crítica e de reflexão, de problematização, de questionamento, recorrendo simultaneamente a um excesso intrinsecamente provocatório, mas aceitável, desde que dentro de coordenadas éticas devidamente acauteladas e que intuitivamente sabemos pertencerem à sátira e à ironia. Claro que há os imbecis e idiotas do costume, que confundem esses processos estilísticos com outros mais prosaicos, soezes e ad hominem, como sejam os da injúria ou os da blasfémia, ignorando ainda, como neste caso, que uma tal atitude pode espoletar reacções menos contidas e desproporcionadas, a ponto de originar consequências preocupantes nas quais se incluem o dar gratuitamente pretextos para a apropriação política da questão com o fito de anatemizar o ímpio inimigo ocidental. É isso que a Síria e o Irão estão a fazer, aproveitando para desse modo desviarem as atenções da objectiva magnitude das suas responsabilidades na degradação da vida política e social no Líbano e na contraproducente produção de armas nucleares, respectivamente.
Em consonância com os princípios e valores que reputo estimáveis, e perante a relatividade cultural que conhecemos, prefiro, apesar de tudo, os excessos possíveis em democracia, embora os lamente e condene, à asfixia ideológica e dialógica característica das ditaduras militares e teocráticas; não desejo passar um instante que seja da minha vida rodeado de pessoas que praticam a opressão machista hipostasiada sob a forma de burkas ou a opressão tirânica, maniqueista e monolítica que recorre à arrogância de fatwas. Contudo, tal como o cristianismo e o judaismo, o problema não é o islamismo, mas sim o fanatismo induzido pela apropriação manipulatória e indevida que certos dirigentes déspotas agravam e alimentam. Quem conhece um pouco a história das instituições encontrará mais semelhanças do que imagina entre, por exemplo, os fundamentalismos cristão e islâmico; e se repetições regista a História, uma é certamente o perigo elevadíssimo que o exercício do poder secular e temporal por parte de instituições depositárias de credos religiosos acarreta inevitavelmente. O actual extremismo de índole muçulmana não nos pode fazer esquecer a violenta prepotência das cruzadas templárias ou as aberrações hediondas que foram os hábitos inquisitoriais católicos, as SS hitlerianas em Auschwitz ou os modos de reivindicar usando o terror e o medo adoptados pela ETA ou pelo IRA. O mal não é um exclusivo dos que nos são culturalmente estranhos e diferentes. A promoção da fé é um lobo com pele de cordeiro e, tal como aconteceu com o pasquim que serviu de rastilho e comburente para mais esta polémica, vai-se por lã e acaba-se tosquiado se se põe em causa a pertinência ou plausibilidade da atitude fideísta.
É preciso ter a sensibilidade e sensatez suficientes para não cometer erros injustificáveis, e muito do ódio islâmico face ao infiel Ocidente radica na impoderada e/ou negligente hostilização que persiste em certo etnocentrismo das bandas de cá. E, de entre os capítulos dessa hostilização, um outro dos mais recentes foi a criminosa e hipócrita intervenção norte-americana no Iraque, na qual o terrorismo de estado do extremista cristão Bush nos ensinou a apagar incêndios com petróleo, incêndios esses que os Estados Unidos têm vindo a atear há décadas; e, o que é mais grave, com a vergonhosa cumplicidade e complacência da generalidade dos países ocidentais, e mesmo, ainda que indirectamente, da própria ONU. Os Estados Unidos violam unilateralmente o direito internacional, a Convenção de Genebra, os acordos de Quioto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e são sancionados com... a impunidade!
Procuremos ser imparciais nos juízos que fazemos e nas atitudes que adoptamos. O bem e o mal são conceitos complementares e não exclusivos ou incompatíveis, a vida colectiva e tudo o que ela comporta tem mais zonas de matizes e tonalidades cinzentas do que puro preto e puro branco. Do mundo árabe assimilámos aquisições culturais vantajosas e memoráveis, como parte da língua que falamos e o sistema de numeração que usamos todos os dias; é moçárabe o sangue que nos corre nas veias; conhecemos hoje o pensamento de Aristóteles graças à cultura árabe, a que devemos também o capital cognitivo legado por figuras como Averróis e Avicena.
Ignorar, entre outras coisas, que a religião é uma forma de purificação existencial e de purga psicológica e insistir em despertar sonos hegemónicos e tentações dogmáticas é um risco que já revelou ter trágicas consequências e que, por isso, deve ser evitado a todo o custo, não apenas como imperativo prudencial mas igualmente por respeito e por dever de tolerância no convívio multicultural. Ou seja, é caso para dizer que, devido a doze ignóbeis caricaturas, a montanha foi a Maomé e não pariu um rato...
Etiquetas: Sociedade
2 Comments:
Oi, Miguel!
Não me parece que o tema (dos cartoons -- ou será cartunes?) valha tanta quantidade de tinta. Tanta tinta só se compreende pela quantidade de petróleo que está por trás.
Mas não é suficiente para me fazer compreender que imponhas limites à sátira cartoonística a partir do conceito de blasfémia. Blasfémia na tua pena de ateu (ou será agnóstico?) significa o quê, Miguel? Colocar Maomé como objecto de caricatura, por ex.?
Finalmente: o tom do politicamente correcto (de que fala o Rui) é dado definitivamente pelo argumento de que os caricaturistas não foram suficientemente sensatos por não atenderem a que a sua "atitude pode espoletar reacções menos contidas e desproporcionadas". Ó Miguel!...
Abraço.
Será mesmo o objectivo dos "Muçulmanos" criticar as caricaturas de Maomé? Não me parece que seja apenas isso.
O objectivo de quem promove estas manifestações desprovidas de sentido lógico, carregadas de violência e insensatez, não é, na minha opinião, de se manifestarem por uma "ofensa" às suas crenças, mas sim aproveitar-se de uma multidão de "cegos" (e de gente que não quer ver), incapazes de se aperceberem da realidade que os envolve a das manipulações que são alvo.
Acho que não será um absurdo dizer que os movimentos terroristas mais radicais "aplaudem" indirectamente as caricaturas de Maomé, uma vez que através delas encontram mais um "motivo" para influenciar as massas menos atentas, mais um motivo para lhes incutir que o ocidente é o "mal" e que só quer a destruição da sua Fé... E todos sabemos que isso não é verdade.
De certo se lembram das caricaturas que retratavam o Papa com um preservativo no nariz... Deu polémica... Mas pouca... Porquê? Porque não houve extremismos... E sem extremismos não há violências. Quem opta pelo extremismo está a ir contra os principios de qualquer religião: O bem comum, o respeito pelo próximo, a tolerância e a Paz.
Todos os que vão contra estes principios vão contra a religião que dizem defender, acabando por isso, por estar contra ela.
No fundo, pouco importa aos regimes islâmicos se Maomé foi caricaturado, até lhes convém que tenha sido... Para fumentarem nos pobres cidadãos desses países um ódio injustificado ao Ocidente... E para terem mais liberdade "interna" nas suas políticas externas... Convém-lhes que as Embaixadas Incendiadas apareçam em Jornais e Telejornais de todos os países... Esperam fazer o Ocidente ter medo e tremer... Não lhes podemos dar esse luxo. Não iremos vacilar.
Enviar um comentário
<< Home