terça-feira, fevereiro 21, 2006

A lusa (de)formação educativa

Se eventualmente começou a ler este artigo de opinião, desde já previno que o seu conteúdo é susceptível de ferir a sensibilidade de todos aqueles que, pelo seu inócuo exercício de cidadania, incompetência, desleixo e acomodação profissionais e parasitismo social, minam o sistema educativo deste pobre país pobre, mais carente de espíritos habilitados e possuidores de uma sólida formação cognitiva de base do que de dinheiro ou subsídios...
Em virtude de, ao longo de cerca de uma década de docência, ter a oportunidade de leccionar o 10º ano, sou um espectador privilegiado do terramoto intelectual que está a varrer «as mulheres e os homens de amanhã» desta pátria lusa, cujo futuro cinzento me deixa apreensivo e angustiado. O défice nacional não é apenas de índole orçamental, mas sobretudo de competências cognitivas de um grande número dos nossos jovens, curiosa e paradoxalmente atrofiados e (de)formados por um sistema de ensino massificado e massificador (afinal elitista e reprodutor de assimetrias sócio-culturais) que, por sua vez, é nutrido por uma acéfala sociedade de consumo desenfreado, o que contraria o propósito democrático (ou utópico?) do ensino para todos e da igualdade de oportunidades.
O importante hoje é ter sucesso com o menor labor meritório possível; é desistir de realizar tarefas antes mesmo de as iniciar, vencidos pelo vislumbre do esforço que comportam; é fazer transparecer, em vez de um efectivo agir eficaz, consequente e consciente; é conjugar o máximo proveito com a mínima responsabilidade; é fomentar o incremento da mediocridade no âmbito de um utilitarismo incongruente e socialmente empobrecedor; é divinizar o efémero na espuma dos dias, pelo exacerbamento da atitude modular que tudo torna transitório e descartável, alimentando a voragem ígnea do ter, que brota da futilidade de modas passageiras e de idiossincrasias portáteis que alienam a idealidade de referências respeitadoras de uma autonomia identitária e existencial...
Perante uma tal cultura de interacção social, é confrangedor e preocupante assistirmos à hodierna descaracterização de um sistema educativo cada vez mais moribundo e que padece de maleitas diversas que, num quadro de prognóstico reservadíssimo, têm causas múltiplas e contornos tão complexos, subtis e inextrincáveis que, na caracterização da escola portuguesa actual, já não se sabe identificar o alfa e o ómega de tal novelo. Da ignorância, do desnorte e da irresponsabilidade políticas, à questionável coragem de mobilização e ridícula impotência e inconsequência das reivindicações sindicais; da ausência negligente e absentismo cívico de muitos encarregados de educação, ao desleixo conformista, acomodado e amedrontado por pressões administrativas (e outros coletes de forças...), que ampliam exponencialmente o anódino facilitismo militante dos docentes e a sua processual desmotivação; da gestão economicista de cifrões reduzidos (que é considerado despesa e não investimento!) de créditos horários apertados, que obriga muitas escolas a mercantilizar o seu espaço físico para eventos como casamentos e festividades afins, à impreparação técnica e pedagógica de tantos pomposamente designados auxiliares de acção educativa; da infantilização do ensino que menospreza e desvirtua o conhecimento, por influência e impertinente intromissão das patéticas e ineficazes «ciências (!?) da educação», ao indefinido zelo hierárquico, autoridade e autonomia ambíguas dos Conselhos Executivos; da pulverização de referências e de modelos de sentir, pensar e agir transmitidos aos jovens pelos 'media', à saturação e transformação conceptual do mercado de trabalho; da utilização revolucionária da tecnologia como mediadora de actos comunicativos, à pressão consumista que converte o supérfluo em necessidade vital...
Enfim, todo um cosmos caótico e desconcertado de razões (seria exaustivo enumerar todas, senão mesmo impossível fazê-lo) que concorrem para que o perfil terminal do aluno do Ensino Básico, segundo a Lei de Bases, não passe de um registo exangue e teórico de humor irónico, já que tal perfil é prontamente desmentido pela generalidade dos alunos de carne e osso que ingressam no Ensino Secundário.
Com efeito, é constrangedor constatar que a maior parte dos discentes que se matriculam no 10º ano não são portadores de hábitos de estudo regular nem de métodos de trabalho e de investigação autónomos; não sabem exprimir-se correctamente, quer em termos orais, quer em termos escritos, desconhecendo regras elementares de ortografia e de síntaxe, o que obsta à produção de textos coerentes, com sentido, com sequência e articulação de ideias e, por outro lado, e concomitantemente, não sabem ler nem interpretar correctamente textos e perguntas, por mais simples que sejam. Essas incompreensíveis lacunas estruturais impedem também que os alunos saibam mover-se nos meandros do raciocínio abstracto e ao nível intelectual da ponderação e explicação de hipóteses e suposições, bem como da análise e da síntese hermenêutica e heurística.
Além disso, um número surpreendentemente ingente dos alunos do Ensino Secundário denota uma resistência injustificável face a tarefas lectivas propostas, perante as quais evidenciam uma realização atamancada à pressa, com precipitação argumentativa e sem qualquer preocupação formal na elaboração e apresentação de "trabalhos". Há até alunos que não sabem estar numa sala de aula, revelando desconcentração, imaturidade comportamental e inaptidão e desinteresse pela aquisição de saber, mesmo quando, na condução das aprendizagens, as aulas são baseadas na não directividade e apelam para a iniciativa e activa participação dos discentes.
Ao invés do que pensam muitos "pedabobos", defendo que o rigor, o esforço, o empenho, a exigência e a seriedade devem ser os princípios que compõem a atmosfera axiológica que envolve a relação pedagógica, sem privilegiar o professor ou os alunos, mas antes implicando-os a ambos no exercício das suas competências e atribuições e tendo como mediação a dimensão cognitiva, constituindo, portanto, os conteúdos programáticos o vértice preponderante da tríade pedagógica e a razão de ser fundamental da escola, mormente no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Infelizmente, o facilitismo e laxismo reinantes, por razões múltiplas (algumas já identifiquei atrás) que vergonhosamente se escudam umas nas outras e com isso fazem a culpa morrer solteira, pervertem e subvertem o que deveria ser a perspectivação responsável e o enquadramento adequado de um sistema de ensino realmente formativo, instrutivo e propedêutico de uma efectiva integração na vida activa e numa sociedade culta composta por jovens cidadãos dotados de saber, de saber-fazer e de saber-estar.
Não se peça à escola que seja o remédio para todos os males sociais vigentes (entre os quais se destacam a desagregação e desestruturação familiares e a crónica mediocretização e apimbalhamento culturais), pois se ela já cumpre mal a sua tarefa!...
Traço este diagnóstico na esperança de que outras vozes críticas façam recrudescer um movimento de ideias e de pessoas que, não estando comprometidas com interesses eleitorais, sindicais, de índole pseudopsicopedagógica e não imitadoras do comportamento do avestruz, se mobilizem e remem contra a maré, erguendo a sua indignação à altura audível do ruído que ensurdece entropicamente o actual estado de coisas. Bem haja aos que aceitarem o repto e pensam pela sua cabeça!

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro amigo

Leio as tuas sábias palavras como se estivesse enterrado até aos olhos no esterco dos pedabobos virusentos do 3º ciclo, esse inferno que afinal existe na forma do dia-a-dia do docente ou talvez de qualquer cidadão Português. Parece que estou, tão, tão, tão tonto de tentar esticar o pescoço, de tentar descortinar um sentido para alguma coisa. Invejo-te pela tua clarividência, pelas tuas certezas.
Talvez estejas menos infectado, pela tua vivência noutro patamar do ensino. Talvez tenhas um antivírus mais eficaz. Talvez a tua alma esteja mais limpa de certas imposições culturais - por terem tido sem apelo nem agravo, a ordem de "delete".
Eu penso pela minha cabeça, penso eu. No entanto, será que essa cabeça não é uma amalgama de cabeças que pensam por si e que também se construíram a partir de outras que eram tão originais como as que as antecederam.
Bolas! Para não dizer outra coisa! Gostaria de ter a certeza duma coisa que fosse. Talvez no racional não haja certezas. Até agora só consegui algumas certezas no emocional.
Junto-te a ti na indignação contra algo que mais me irrita e entristece; algo que encontro praticamente em cada minuto dos meus dias, e que alguns insistem em alimentar e até admirar, por incrível que pareça. Essa coisa viscosa e repugnante que se tem vestido com "roupas" semelhantes ao longo dos tempos e que contra, no fundo, o teu blog, o teu ser, também luta mas que só fere ligeiramente, infelizmente.
Estou tonto, tão tonto, de lutar contra esse tirano que se alimenta da sociedade, da comunidade, do consenso que se torna em sem-senso.
Talvez amanhã (ou hoje) possamo-nos encontrar para organizar a nossa batalha contra o inimigo, esse sim, imortal, como se fossemos pesonagens duma tragedia Grega. Só assim é que conseguimos alguma felicidade e satisfação e paz de espírito.

Bem haja os anti-heróis.
Obrigado pelas tuas palavras reconfortantes e inspiradoras.

O meu discurso não será tão pragmático como o teu, mas também não pretendo que seja. É apenas o despejar dalguma agonia suave que me acompanha e se renova.


Abraço, Marco Ferreira

12:42 da manhã  

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