quinta-feira, julho 20, 2006

Os filantropicamente misantropos

Há um admirável, mas historicamente recorrente, desígnio filantrópico a brotar de milionárias consciências, cuja confluência de vontades tem sido divulgada, ou melhor, publicitada a um ponto tal, que desconfio radicar mais numa instrumentalização da pobreza para benefício particular e prestígio pessoal e empresarial, do que num efectivamente descomprometido e intencionalmente desinteressado gesto de genuína solidariedade.
Depois de Bill Gates (especula-se já que, a partir de 2008, dedicar-se-á exclusivamente à Fundação fatuamente baptizada, modéstia à parte, com o seu nome e o da esposa) e de Warren Buffet (que doou milhões de euros à Fundação do patrão da Microsoft), Portugal também tem os seus abastados cidadãos com veia filantrópica: onze empresários lusos, membros do escol pátrio das lucrativas actividades, conceberam e apresentaram um projecto que pretende salvar o país do flagelo social que é o insucesso escolar. Talvez o Presidente da República tenha servido de inspiração, aquando do "roteiro da inclusão social" com que debutou a sua demanda presidencial fora de Belém.
Assumir uma perspectiva crítica face ao comportamento caritativo convocado nesta reflexão, pode parecer censurável e ser considerado um juízo revelador de insensibilidade social ou indiferença antropológica; pode até servir para invocar o argumento hipócrita de que não é só a esquerda ideológica que tem preocupações com as áreas sociais, pois também nestas a direita moderna e liberal (e o sector privado, capitalista, de que faz a apropriada apologia) elabora um quadro de actuação e de práticas de gestão, que são até mais eficazes e eficientes. Ora, é neste ponto que reside o busílis da questão, que exige que se desmonte e desvele na sua ignominiosa face o que na verdade move o voluntarismo filantrópico da endinheirada gente.
Assim, e servindo-me da inquirição de Almeida Garrett, para fazer um rico, quantos pobres são necessários? Isto porque as fortunas das escassas elites milionárias implicam o custo desumano medido em multidões de explorados, esfomeados, subnutridos e escravizados, hoje como no passado e incluíndo formas de produção indignas e degradantes, como o trabalho infantil e o turismo sexual, entre outras. Há, portanto, uma reciprocidade em ciclo vicioso: para se acumular riqueza nas mãos de uns poucos é impossível não explorar, pelo que se legitima e até justifica essa exploração através da caridade e solidariedade que encobrem os reais interesses por detrás da conveniente filantropia - não é filantropo quem quer, mas quem pode! Eis assim o verso e o reverso da atitude parasitária misantrópica: para o capitalismo dominante, exploração e filantropia são recursos instrumentais do mesmo objectivo de tácita e autorizada concentração de riqueza.
Finalmente, a ideia de que o sector privado é incomparavelmente mais produtivo e eficaz que o sector público, até pode ser verdade: é que edificar fortunas implica minar a actividade económica e financeira com as inexoravelmente insuperáveis e crónicas doenças do capitalismo, como a corrupção, o nepotismo, as falcatruas, as oportunas e proficientes falências, as deslocalizações, etc.. Filhas deste mesmo capitalismo, alguém quer contar a história de Pedro Caldeira, ou do destino de gigantes como a Enron ou a Afinsa?
Bem haja aos magnatas filantropos de todo o Mundo e arredores!

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