domingo, junho 10, 2007

Falta cumprir Portugal!

Hoje comemora-se pela trigésima vez o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» - assim foi decretado, em 1977, pelo Governo de então. Antes, durante o período infeliz de meio século de Estado Novo, o 10 de Junho era equivocamente proclamado como o «dia da raça», como se a nação lusa pudesse constituir, por si, uma raça: por um lado, diversos foram os povos que ocuparam a península, mesmo antes da fundação da nacionalidade (1143); por outro, é secular a diáspora que se iniciou após os Descobrimentos, com a inevitável miscigenação que ocorreu - o que esta raça tem de puro é, e ainda bem, a pureza da mestiçagem!
864 anos depois da inauguração por Afonso I, o Portugal que hoje existe reflecte uma preocupante atitude colectiva pautada por um débil sentido de responsabilidade cívica, baixo grau de exigência e de auto-estima, fruto de um apático e acrítico exercício de cidadania e de uma mentalidade subserviente e cobarde que teima em não guardar na memória os erros do passado. Os portugueses têm mais vocação de escravos, senão vejam-se os quase nove séculos de subordinação aos autocráticos caprichos monárquicos e ditatoriais, cujas reminiscências se traduzem nas coevas nostalgias por tempos de opressão (quem nunca ouviu dizer que "no tempo de Salazar é que era bom"?). Persiste, portanto, uma atitude de não reconhecimento dos problemas, que se imputam a terceiros, num locus de controlo externo ou freudiana racionalização que justifica os fracassos e moraliza as derrotas, mesmo quando se sabe não terem sido encetados os mais tímidos esforços para alcançar o que seria desejável.
Apesar disso, e num deslumbramento mimético importado de outras nações, que serve de refrigério e alento para consumo interno, o Presidente que há simula a abundância de heroísmo e voluntarismo pátrios distribuindo medalhas e comendas, como quem dá milho aos pombos ou oferta chocolate belga, numa vã glória de comendadores que estimula o reforço da ufana vaidade. A Camões não lhe chegou ser o maior poeta universal dos épicos Lusíadas, para evitar morrer na miserável solidão e na ingratidão do abandono, de nada valendo as palavras amarguradas da estrofe que no canto IX canta:
"E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro;
Verdadeiro valor não dão à gente.
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possui-los sem os merecer."
Tantos séculos de história e de desbaratadas aventuras revelam-se, afinal, insuficientes para uma construção consistente como povo civilizado e na vanguarda de valores convivenciais básicos. As urbes lusas são um caótico traçado de desalinhado betão que acinzenta a paisagem, ruas pejadas do lixo que tropeça nos passos dados, esgotos a céu aberto, águas contaminadas pela incúria e pelo desleixo, passeios povoados pelos carros que, nas estradas, pelejam entre si em mecânica e veloz guerra civil; espaços verdes descuidados, zonas naturais degradadas, cobertas de entulho, devoradas pelas chamas da incúria, invadidas por projectos que, de interesse nacional, têm a força corruptiva do capital... Merece um povo assim o privilégio do Sol que o acolhe?
A humana matéria denota o defeito já genético do atavismo, havendo um claríssimo desrespeito pela liberdade do outro, valor manchado pela ancestral tradição de nacional «bufaria» que, remontando aos sórdidos tempos da «Santa» Inquisição católica e atravessando o católico Estado Novo - triste povo acomodado na inculta e iletrada crendice de pagãs litanias disfarçadas de religião! -, 33 anos de democracia não conseguiram erradicar. As estórias de delação na sociedade e na administração são marcas vergonhosas da pidesca subserviência, do subdesenvolvimento cívico, da inveja congénita e da paroquial vontade de simultaneamente mandar e agradar à mesquinhez dos vis proveitos e vantagens. Porém, quando a delação se torna um dever cívico, é a cobarde pusilanimidade que se apropria desta lastimosa forma de agir, dando desprezível cobertura à violência doméstica, ao trabalho infantil e a tantas outras formas de corrupção activa e passiva.
É este o país em que a justiça é inócua e injusta na sua escandalosa ineficiência, ineficácia e obscena morosidade, cooperando com a iníqua impunidade que protege os privilegiados que desgovernam e violam as leis que, segundo muitos, são das melhores do mundo! É este o país que agora vislumbra nos funcionários públicos uma casta de inúteis e uma estirpe de criminosos que vampirizam o erário público, classe de privilegiados a eliminar por ofenderem o esplendor e o deslumbramento da exemplaridade do sector privado, paradigma de virtudes e modelo de cumprimento à prova de evasão fiscal ou exploração laboral, sem mácula que se lhe detecte... É este o país que indemniza levianamente ou recompensa com torpe desonestidade legiões de ministros, secretários de Estado, assessores, directores-gerais e administradores, pagando-lhes, despedindo-os ou exonerando-os com milhões de euros, cargos sobre-remunerados e reformas douradas; e, em contrapartida, é este o mesmo país que faz a pública apologia do sacrifício colectivo e da falência do modelo social do Estado providência, sobrecarregando os cidadãos com uma das mais elevadas tributações que a Europa conhece, retirando-lhes direitos sociais elementares na Educação, na Saúde, na Segurança Social, na Justiça ou na Segurança, diminuindo-lhes drasticamente o poder de compra com a baixa de salários e pensões, e exigindo-lhes mobilidade e flexibilidade máximas... É este o país que assim acautela a qualidade de vida de todos os seus concidadãos e que potencia o desejo das novas gerações em emigrar, não descortinando quaisquer oportunidades de subsistência nesta desditosa pátria!
A julgar pelo desastre que é o actual sistema de Ensino, ainda mais destruído com as recentes «reformas», Portugal é uma nação sem futuro risonho, que tarda em aprender pela longa biografia que já tem, de facto reformada pela obsolescência da história, aniquilando os anseios dos "egrégios avós". Será composta de uma invariável elite que continuamente se perpetuará nos gabinetes decisórios, eleita por uma imensa multidão de gente acéfala e obediente, cujo horizonte se esgota na posse rápida, imediata e sem esforço, orientada no manipulatório desiderato do alienante consumo.
Agora, nem de traineiras se fazem os "heróis do mar" e, como Pessoa escreveu (também ele reconhecido postumamente), 864 anos depois ainda "falta cumprir-se Portugal!" A esperança pode ser a última coisa a morrer, mas... morre!

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1 Comments:

Blogger morffina said...

O que vale é que o Presidente desta républica promete não se resignar ... :)

Abraço
MF

11:20 da tarde  

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