sexta-feira, janeiro 04, 2008

Crescei e desenganai-vos!

O discurso político recente tem feito sobressair, entre outras mentiras, o tema quase obsessivo da natalidade: a ideia é que, sem bebés, as actuais gerações em idade fértil comprometem a sustentabilidade futura no pagamento de reformas e subsídios de desemprego e põem em causa o equilíbrio no ratio entre gerações.
Entre as muitas razões que falaciosamente se apontam para explicar uma tal quebra da natalidade, encontram-se a da crescente participação feminina na vida activa - as mulheres já não se reduzem ao papel de «domésticas» e «fadas do lar» - e a da emancipação social que a pílula anti-concepcional proporcionou ao género portador de ovário. Ora, se esta segunda justificação é plausível, já a primeira carece de seriedade histórica e padece de estreiteza cognitiva, pois desde a revolução agrícola, e sobretudo após a revolução industrial, que o papel feminino não é preponderantemente maternal e «doméstico», mas também laboral, designadamente em profissões maioritária e tradicionalmente desempenhadas pela mulher (servente, criada, aia, mulher-a-dias, mondadeiras, costureiras, ceifeiras, cabeleireiras, manicures, varinas, padeiras, secretárias, operárias fabris, etc.). Além disso, sabemos que em países onde o nível de emprego feminino é elevado, como nos países nórdicos e nos Estados Unidos, a taxa de natalidade situa-se acima da média nacional e até europeia.
Por outro lado, este discurso político acerca da sustentabilidade da segurança social ilude a essência dos problemas, pois a elevada fertilidade em Portugal durante o Estado Novo - falamos do século XX! - era factor de pobreza, exclusão e atraso sociais para grande parte da população (analfabeta e subnutrida). Referir a baixa da natalidade é demagógico e populista, podendo por vezes ter mesmo conotações raciais e chauvinistas, pois omite-se do discurso as verdadeiras soluções: ignora-se a má distribuição demográfica no planeta, subestimando-se importantes medidas que passam inexoravelmente pela imigração (mormente se se fala de portugueses, seculares especialistas que são de diáspora!), bem como se comete a desonestidade intelectual de subestimar o facto de, no quadro sociológico contemporâneo, o tempo de vida activa das pessoas ser mais breve (a escolarização, a formação e a especialização são mais prolongadas que anteriormente, adiando a entrada no mercado de trabalho) em contraponto com a esperança média de vida, que é mais dilatada (embora se viva agora mais anos, isso não significa que as pessoas sejam igualmente produtivas à medida que envelhecem).
Ou seja, nas modernas sociedades em que nos coube a sorte de viver - de consumo e muito tecnologizadas e artificiais -, «fazer bebés» pode constituir-se mais como o problema e menos como a solução, engrossando mais a lista de desempregados do que a de reformados. Portanto, esta instrumentalização da natalidade e dos bebés (antes religiosa, agora política e económica) é falaciosa e deve ser denunciada. Aliás, é de uma hipocrisia atroz e censurável querer promover a Procriação Medicamente Assistida sem assegurar condições de educação e protecção familiar, fechando maternidades e unidades de saúde, bem como estabelecimentos de ensino; e mais: impondo o fervor produtivo com uma legislação laboral hostil ao acompanhamento familiar, visto que, por exemplo, querer conciliar a «flexigurança» com medidas de reforço e apoio social não passa de querer fazer a quadratura do círculo...
O novo pregão deve ser reformulado: "Crescei e desenganai-vos!"

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1 Comments:

Blogger Pedro Vitoria said...

A redução da natalidade em Portugal mostra que o povo é mais perspicaz do que pensávamos :)

Isto não está fácil para os vêm a seguir.

Ah! E o PR com aquela pergunta boçal, mostra mais uma vez o seu espírito tacanho e imbecil. Aqui o povo não foi tão perspicaz assim quando o elegeu :)

Bom ano!

11:43 da manhã  

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