quinta-feira, janeiro 17, 2008

O vírus da demência

Com alguma frequência, somos confrontados com situações que revelam com cristalina evidência o quão difícil é vencer preconceitos arraigados como patológicas lapas nas atávicas consciências dos que não querem ver um pouco mais para além do medíocre senso comum. E não é só neste país a tantos níveis subdesenvolvido e de férreas tradições tantas vezes desprovidas de sensatez - do que venho aqui falar aconteceu em França.
Com efeito, um cartaz de campanha institucional de luta contra o VIH causou recentemente acesa polémica na pátria de Sartre e Beauvoir, por ser ousado no conteúdo: um casal homossexual - oh Deus do céu! - em ostensiva pose de coito - oh supremo pecado de interdita luxúria... Imediatamente se insinuaram os mais imbecis argumentos e as mais idiotas diatribes visando o bem intencionado anúncio.
Não pretendo desmontar tão néscio argumentário vociferado contra o simpático cartaz, mas tão somente lançar umas gotas de água em mentes tão pouco despertas e cristalizadas no prejuízo da superstição e do erro das vis convicções.
Se a homossexualidade é algo «antinatura», que contraria o lógico devir reprodutivo, então censuremos também e condenemos ao absentismo sexual as mulheres e os homens que já tiveram, respectivamente, a menopausa e a andropausa, bem como os milhões de casais heterossexuais que, inférteis (ou não), não têm filhos biológicos - afinal, eles não podem reproduzir! Para não falar da masturbação... Mas não seria isso tão absurdo e estupidamente irracional?
E, se ser gay ou lésbica é «antinatura», como classificar o vício de fumar? Além disso, que eu saiba, fumar atenta contra o direito à saúde alheia e do próprio fumador, enquanto o acto sexual é saudável psicossomaticamente. Até os celibatários padres papistas sabem isso, ou entre eles não abundasse a carnal fraqueza da tentação consumada, quer a «normal» quer a desviante pedofilia... [Mas isso é outro assunto!]
Se, por consistir numa diferença, a homossexualidade é uma patologia de ordem biológica, então condenemos também ao ostracismo os portadores de trissomia 21 e/ou de outras deficiências. Por outro lado, que direito tem uma sociedade em se intrometer numa voluntária partilha de intimidade e carícia entre pessoas adultas que se amam, a qual não lesa a integridade de terceiros? Não seria mais útil concentrar as censórias energias contra a pedofilia e a violência doméstica praticada no seio de casais heterossexuais, afinal tão recomendavelmente de acordo com os padrões morais desejáveis?
Mas haverá alguma palerma contaminado pela letargia do preconceito, que ache que o número de homossexuais ameaça a continuidade da espécie? E acaso sabem que o ponto 1 do Artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proibe a discriminação em razão da orientação sexual, entre outras circunstâncias?
Perder tempo e gastar o latim com gente tão falta de siso e que arrogantemente arvora as suas infundadas crenças que abusivamente querem impor aos outros, só pode ser sinal que a contemporaneidade ainda não se libertou do primário medievalismo que teima em continuar. Por mim, estou convencido de que uma das características de um mentecapto é ignorar o polimorfismo em que se materializa o verbo amar - e não se pode defender a espécie com tão inusitado ódio dirigido a tão inócua, mas fundamental e fecunda, prática humana.
Amar transcende a morfologia do corpo! Como não perceber isso?

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2 Comments:

Blogger Otília Gradim said...

É sempre muito bom ler os teus textos! Vou "roubar" o cartaz. bjs

10:46 da tarde  
Blogger morffina said...

São os zombies do costume que foram criados por um deus branco, hetero (?) e que não perdoa.

Abraço
MF

11:00 da manhã  

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