A criança que há nos adultos
Sou um convicto republicano; tudo o que tenha a ver com a monarquia suscita em mim um sentimento de fastio e compaixão, pois o régio sistema afigura-se-me coisa obsoleta e ultramontana, como uma relíquia que ainda vai funcionando, não obstante ter já outros e mais fiáveis modernos substitutos sucessores. Como aquele calhambeque que se colecciona e que ainda vai servindo para passear em encontros de coleccionadores e em fins-de-semana de solarengo estio, mas sem poder ter mais extensiva utilidade e intensivo uso, sob pena de se desconjuntar irremediavelmente.
Por que motivo refiro isso? Bom, porque os nossos vizinhos ibéricos são monárquicos e acompanham com a fátua curiosidade habitual as aventuras da família real que, desde há oito meses e se o machismo constitucional for corrigido, têm na infanta Leonor uma putativa rainha, dada a vinculação dinástica que advoga que o mérito está no azul do sangue. Por razões pouco racionais, tenho uma remota simpatia pelo rebento de Felipe e Letícia: ambos nascemos no dia 31 de Outubro, embora não seja esse facto que me levará a deixar de ser republicano; a afectividade não me tolda o bom senso político nem a lucidez democrática.
Ora, acontece que li num jornal diário que foi celebrada uma missa na catedral em frente do Palácio Real, em Madrid, com o objectiva de a cachopa ser apresentada... à virgem de Atocha! A petiz, segundo o periódico, e por mais que a sua mãe procurasse arrancar-lhe um sorriso, por mais pequeno, ligeiro, subliminar e esboçado que fosse, permaneceu sisuda, já certamente formatada pelo cumprimento das exigentes regras protocolares e antecipando no estilo o exercício futuro de um reinado tão asséptico quanto o da antepassada inglesa Isabel II.
Agora, isto de apresentar um bebé a uma estátua tem que se lhe diga e é de fazer inveja a surdos-mudos. Por outro lado, possuindo o panteão católico um tão vasto leque de humanas divindades aureoladas, não será injustificado o privilégio chauvinista por uma virgem em particular? Será que na prodigiosa eucaristia realizada foi lido, por exemplo, o Êxodo 20 e 34, Salmos 115 ou Isaías 42? Não seria melhor, dada a afinidade etária, guardar a cerimónia lá para o Natal, a tempo de mais adequadamente ser apresentada ao menino Jesus?
Para este procedimento - adultos com comportamento de criança imporem a uma criança um comportamento de adulto - nem Deus, se existisse, teria explicação ou resposta.
Etiquetas: Sociedade
2 Comments:
Pobre rica Leonor! A irracionalidade e a ilusão de que é algo de especial vai-lhe acompanhar toda a vida. Ela é especial por ser criança como qualquer uma das outras.
Leonor vais ter muito que aturar. E nós vamos ter que aturar estes complexos de superioridade até quando?
Abraço
MF
O que se denota por aqui são complexos de inferioridade... neste campo, como em qualquer outro, prefiro ter complexos de superioridade!
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