Ipsis verbis [5]
"Se a mim me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, o primeiro lugar dá-lo-ia à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade. Porque a bondade, por si só, já dispensa justiça e caridade, porque a justiça justa já contém em si caridade suficiente. A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça."
- José Saramago, escritor e Prémio Nobel da Literatura, em «Cadernos de Lanzarote», vol. 3
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6 Comments:
Em muitas coisas não concordo com Saramago, que pratica uma literatura que fundamentalmente olha para o chão. Mas esta desconstrução conceptual da bondade, justiça e caridade parece-me do melhor que tenho lido recentemente.
Claro que quando nós, na Igreja, falamos em caridade, teoricamente falamos (e é bom que o vivamos também) de uma virtude teologal ou divina que pressupõe em graus diversíssimos um olhar transcendente sobre o outro no reconhecimento da sua inalienável dignidade assim como pressupõe praticar uma concomitante acção em favor dele que pode roçar a loucura da bondade e a loucura da justiça por inspirar uma entrega e um auxílio ao ponto da perda física de nós mesmos, na perspectiva de que a temporalidade não é o contorno sumo da realidade, mas escada para Outra Coisa adveniente.
Li os teus escritos sobre a Igreja Católica e a AI e estou de acordo genericamente contigo: onde houver perversão e injustiça, parece-me que não haverá lugar ao nosso silêncio conivente. No que tu e eu poderemos diferir é no tipo de paixão colocada no tratamento da mesma questão.
Eu insurjo-me apaixonadamente a partir de dentro. Tu, parece-me, insurges-te apaixonadamente a partir de fora, embora, concede-me, haja em ti a nítida tonalidade de enormes expectativas do papel da Igreja enormemente defraudadas.
Mas para mim a massa da Igreja é muito humana, muito mundana, muito imperfeita, como qualquer de nós, e também ela nos exige a paciência de um menino rebelde e relapso ao nosso cuidado.
Abraço Amigo
Joshua
Bem... o José é o autor do meu "segundo livro da vida": o Memorial. Comecei de ler os Cadernos e desisti. Por me parecer que, quando o José fala dele, é dele que fala. Contrariamente, por exemplo, a Torga em cujos diários fala do Mundo (dos Homens, sobretudo), mesmo quando fala dele.
Aqui, de facto, o José surpreendeu-me. E fez-me lembrar a canção velhinha de outro José (o Barata Moura): "vamos brincar à caridadezinha".
Abraço.
Abraço.
Meu caro Joshua: agradeço a cordialidade e simpatia do teu comentário, mas dispenso o paternalismo de quem acha que um ateu é um católico desviado ou "defraudado"; no meu caso, sou teologicamente ateu, esclarecido e informado! Que boa é essa "virtude teologal ou divina", mas meu caro, a minha razão dispensa tb essa falaciosa e intelectualmente desonesta petição de princípio que o medo da morte ("perda física de nós mesmos")incute no crente - tenho a consciência da finitude mas não a ilusão da fé nem a alucinação que vê "escada para Outra Coisa adveniente" (prefiro o elevador!).Às vezes, acho que a religião é mais literatura poética e devaneio; eu gosto mais de prosa! Se expectativas defraudadas há, é viver num mundo onde tantos professam os dogmas da instituição mais criminosa da história (e que ainda continua a cometer crimes hediondos, a coberto da doutrina e apesar do patético celibato e voto de castidade!) e assim lhe dá legitimidade; não faz sentido! Aliás, como podes criticar e dizer tão mal de Sócrates e do governo (que tb é "massa mundana e imperfeita e exige a paciência" de que falas - como vês é fraco argumento que dá para tudo!) e fazeres a apologia do dogma cego, biblicamente herético e seres tão condescendente com a arrogância da Igreja que, no poder, já mostrou à saciedade fazer de Sócrates uma alma bondosa e altruista e de Hitler uma inofensiva criatura - a não ser que não tenhas memória histórica... Não te faz mossa uma ideologia que discrimina as pessoas pelo órgão genital que trazem no meio das pernas? Defendo a vida e a liberdade de pensamento e são esses valores que defendo apaixonadamente (não desvio a paixão para entidades com o mesmo carácter ontológico do Pai Natal). Não contes comigo para alinhar pela opressão, a intolerância e o fundamentalismo de dogmas ocos, absurdos e irracionais, os rituais e as formalidades tolas, as ladainhas mecânicas e as fórmulas parvas e destituídas de senso. Gosto mais da linguagem objectiva e não da metáfora soteriológica!Por isso critico Sócrates e a Santíssima Trindade! Um abraço tb sinceramente amigo e com a benção da "Outra Coisa" :)
ALM
Gostei da tua resposta, mesmo tendo vindo em esguicho, como uma fuga de água represada num cano rompido. Pensa que em mim também há um catolicismo ateu e rebelde, na medida em que é impiedoso com a tibieza dos homens e expectante relativamente a Deus, um catolicismo ateu igualzinho ao teu ateísmo católico. E, acredita, gosto de ti, quero continuar a ser teu amigo, sem paternalismos, somente com o prazer de testemunhar o que és, como és e ter (continuar a ter!)prazer nisso.
Eu estive por dentro do lado deformador, abusador da individualidade, de certo catolicismo normalista: nunca tive vida fácil entre o mofo das sacristias porque a tua razão, a tua independência e ciência que em ti clivam de Deus, a mim me atraiam irresistivelmente ainda mais para uma radicalidade recta e para o Deus que não podes tentar pressupor ou definir na minha experiência pessoal d'Ele, embora a caricatura, por o ser, até me divertir.
Abraço.
Responde. Respondes?
Abraço
Joshua
Caríssimo Joshua: embora em matéria de religião esteja visto que a nossa divergência é insanável, é óbvio que a nossa amizade está acima disso; aliás, não há espaço de maior franqueza do que aquele que se processa entre amigos (se realmente o são!). É em nome disso que te respondi e volto a responder: não há pertinência na tua argumentação, pois, mais uma vez, incorres em petição de princípio (o facto de achar que tenho uma perna partida, não substitui a prova do raio x, percebes?) - fica bem com o teu Deus mas não queiras paternalmente impô-lo aos outros (até pq no céu tudo é demasiado perfeito e eu não quero a eternidade, pq é demasiado tempo!). Permite-me que te manifeste a minha estupefacção perante o teu juízo que admite um "catolicismo ateu" e um "ateismo católico"; já agora, por que não um "catolicismo islâmico", uma "menopausa masculina", uma "mulher meia-grávida", um "fascismo comunista", um "crente sem fé", uma "jihad judaica", uma "monarquia republicana" e toda a trapalhada conceptual e antinómica que, nas meias-tintas, se fixa no centrão de conceitos e tudo explica sem nada explicar!? Não meu caro, não vou por aí, não alinho na desconstrução semântica que queres fazer, embora perceba a confusão que te leva a crer em fantasmas. Respeito a tua convicção teista, até porque se calhar é tão intensa e convicta como o meu ateismo (não encontrarás nenhuma definição de variante católica, a não ser talvez no teu medo da finitude). Já agora, se eu fosse crente, não seria seguramente católico, pois é uma religião demasiado humana para ser divina e transcendente!
Olha, parece que a água represada perdeu o caudal ou o cano foi reparado :)
Abraço de amizade sincera e inquestionável!
ALM
NOTA - Visita o meu amigo Micróbio (link no meu blog), assolado tb pelas tuas inquietações metafísicas que, lamento, não tenho nem partilho. Se eu me dou bem convosco, imagino vocês... :)
Porra!!! Sejamos justos! Com tanta bondade, haja caridade! Não escrevam tanto que isto de rolar o rato cansa!
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