A sonhada Ibéria de Saramago

Claro que o caso de Saramago contradiz, e bem, o xenófobo e chauvinista aforismo destas bandas que assegura que "de Espanha, nem bom vento nem bom casamento". Mas o excelso escritor da Azinhaga parece ignorar, na sua visão idílica do tema, que milhões de bascos, galegos e catalães lutam, pelo contrário, pela independência das suas nações, ou, pelo menos, visam conseguir o maior reforço possível das suas autonomias em relação a Madrid. Alguns até recorrem ao terrorismo para esse fim...
Por conseguinte, se concordo objectivamente com a sua qualidade e mérito literários, muito antes de em 1998 ser justamente laureado com o Nobel, já reputo de discutível a sua qualidade e mérito de profeta: por um lado, só o futuro pode validar uma profecia (e então já não andaremos no mundo dos vivos, vantagem esta, pouca séria, que é a das religiões); por outro lado, a «Ibéria» existe há séculos, apesar de dividida em dois Estados, excepção feita ao episódico domínio filipino entre os séculos XVI e XVII. E onde ficaria a capital, em Madrid ou em Lisboa? E o regime a adoptar seria monárquico ou republicano? E iria Saramago escrever em português ou em castelhano, uma vez que não existe o «iberês»?
Caríssimo e luminoso Saramago: com o respeito sincero e profundo que nutro por si e com que reverencio a sua produção escrita (coisa rara num iconoclasta como é este seu admirador), até concordo que muitas são as ocasiões em que me envergonho de ser português (país minado pela corrupção e pelo nepotismo, governado por hordas de mentirosos e de incompetentes políticos, com sistemas educativo e judicial ineptos e falidos e onde grassam graves injustiças sociais). Porém, Portugal beneficia da secular estabilidade de ser um Estado-nação, republicano e fautor de laicismo, cultural e linguisticamente homogéneo; enquanto a Espanha é uma federação de nações sob um anacrónico regime monárquico, cultural e linguisticamente heterogénea. Por isso, o país de Cervantes é uma manta de retalhos de problemática sustentação.
Para integrações já nos basta a mais pertinente de todas, a integração numa comunidade de Estados europeus, ibéricos e não só, cujo potencial de desenvolvimento pode e deve ir para além da simples união monetária. Naturalmente que, em termos económicos e de consumo, Portugal é dominado pela Espanha, mas há aspectos outros a que uma fusão de Estados deve obedecer. Com Portugal integrado em Espanha, o todo seria, inequivocamente, inferior à soma das partes, pois, como está, os nuestros hermanos já têm problemas que cheguem.
Entretanto, caro José Saramago, faça o que melhor sabe: escreva e desvende-nos idílios narrativos que, não sendo da fáctica geografia, são da prodigiosa beleza heterocósmica e estilo literário que brotam da sua genial criatividade! Bem-haja, «Ibérias à parte»!
3 Comments:
Subscreco, assino e confirmo. Ainda que o Ensaio sobre a Cegueira me tenha marcado, em partes iguais, pela ausente pontuação e pela clareza do imaginário, quem me tira a narrativa de Eça tira-me tudo. É que sou muito agarrada à divisão por períodos das frases... ;) Quanto à Ibéria... Será que o Sr. já ensandeceu?
Detesto concordar contigo...
Integração sim, mas Europeia, com os estados e cidadãos em pé de igualdade.
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