A sonhada Ibéria de Saramago
Sou, desde os anos 80, leitor de José Saramago e um grande admirador da sua obra literária. E, desde que vive no repousado retiro insular de Lanzarote em união de facto com Pilar del Río (anteontem consumada em matrimónio), desenvolveu uma vocação apologética do iberismo, a ponto de, em recentíssima entrevista, ter desassombradamente defendido que Portugal acabará por integrar-se em Espanha e, dessa união, originar-se-á um Estado ampliado que designa de «Ibéria», composta de outras nações como a Catalunha, a Galiza ou o País Basco. Projecta, portanto, um paralelismo entre a sua vida pessoal e o destino lusitano.
Claro que o caso de Saramago contradiz, e bem, o xenófobo e chauvinista aforismo destas bandas que assegura que "de Espanha, nem bom vento nem bom casamento". Mas o excelso escritor da Azinhaga parece ignorar, na sua visão idílica do tema, que milhões de bascos, galegos e catalães lutam, pelo contrário, pela independência das suas nações, ou, pelo menos, visam conseguir o maior reforço possível das suas autonomias em relação a Madrid. Alguns até recorrem ao terrorismo para esse fim...
Por conseguinte, se concordo objectivamente com a sua qualidade e mérito literários, muito antes de em 1998 ser justamente laureado com o Nobel, já reputo de discutível a sua qualidade e mérito de profeta: por um lado, só o futuro pode validar uma profecia (e então já não andaremos no mundo dos vivos, vantagem esta, pouca séria, que é a das religiões); por outro lado, a «Ibéria» existe há séculos, apesar de dividida em dois Estados, excepção feita ao episódico domínio filipino entre os séculos XVI e XVII. E onde ficaria a capital, em Madrid ou em Lisboa? E o regime a adoptar seria monárquico ou republicano? E iria Saramago escrever em português ou em castelhano, uma vez que não existe o «iberês»?
Caríssimo e luminoso Saramago: com o respeito sincero e profundo que nutro por si e com que reverencio a sua produção escrita (coisa rara num iconoclasta como é este seu admirador), até concordo que muitas são as ocasiões em que me envergonho de ser português (país minado pela corrupção e pelo nepotismo, governado por hordas de mentirosos e de incompetentes políticos, com sistemas educativo e judicial ineptos e falidos e onde grassam graves injustiças sociais). Porém, Portugal beneficia da secular estabilidade de ser um Estado-nação, republicano e fautor de laicismo, cultural e linguisticamente homogéneo; enquanto a Espanha é uma federação de nações sob um anacrónico regime monárquico, cultural e linguisticamente heterogénea. Por isso, o país de Cervantes é uma manta de retalhos de problemática sustentação.
Para integrações já nos basta a mais pertinente de todas, a integração numa comunidade de Estados europeus, ibéricos e não só, cujo potencial de desenvolvimento pode e deve ir para além da simples união monetária. Naturalmente que, em termos económicos e de consumo, Portugal é dominado pela Espanha, mas há aspectos outros a que uma fusão de Estados deve obedecer. Com Portugal integrado em Espanha, o todo seria, inequivocamente, inferior à soma das partes, pois, como está, os nuestros hermanos já têm problemas que cheguem.
Entretanto, caro José Saramago, faça o que melhor sabe: escreva e desvende-nos idílios narrativos que, não sendo da fáctica geografia, são da prodigiosa beleza heterocósmica e estilo literário que brotam da sua genial criatividade! Bem-haja, «Ibérias à parte»!
3 Comments:
Subscreco, assino e confirmo. Ainda que o Ensaio sobre a Cegueira me tenha marcado, em partes iguais, pela ausente pontuação e pela clareza do imaginário, quem me tira a narrativa de Eça tira-me tudo. É que sou muito agarrada à divisão por períodos das frases... ;) Quanto à Ibéria... Será que o Sr. já ensandeceu?
Detesto concordar contigo...
Integração sim, mas Europeia, com os estados e cidadãos em pé de igualdade.
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