Estado dubitativo - 3
No volume 1 do seu diário, a que deu o título de Conta-Corrente, Vergílio Ferreira escreveu o seguinte no dia 26 de Abril de 1974:
"Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir."
Decorridos 32 anos, será que, no trânsito entre o sentir, o pensar e o dizer, não teremos nós hoje, também, que "serenar para reflectir" sobre ilusões frustradas e ideais adiados? Quando é que a desilusão deixará de ser "excessiva para a nossa capacidade de pensar e sentir"? Quantas batalhas mais para a "vitória" da esperança sobre o decrépito saudosismo, da liberdade lúcida sobre a bruma conservadora?
P.S. - Quem ontem ouviu o discurso de Cavaco Silva no Parlamento deve ter ficado perplexo: um conservador ter uma intervenção marcadamente de esquerda, reconhecendo a exclusão social e as assimetrias várias de que padece Portugal e criticando a distância a que estamos de uma sociedade efectivamente com princípios de justiça social, só nos reintegra na irresolúvel desordem das coisas... Para mais, sem cravo na lapela!
Etiquetas: Política
3 Comments:
É a prova cabal de que a distinção direita - esquerda é um conceito em desuso e que apenas se aplica nos extremos.
Nos sectores Sociais - Democrata e Socialista, não considero que tal separação exista. Estamos num mundo em constanta mudança e a própria análise política muda.
Para além do mais não considero o Dr. Cavaco Silva conservador... E digo porque o conheço.
É a desmistificação de que o homem de "direita", como os defensores do sistema "esquerda-direita" gostam de apelidar, não tem sentimentos.
Um abraço.
"Uma intervenção marcadamente de esquerda, reconhecendo a exclusão social e a assimetrias..."... o chavão mantém-se: a preocupação social é um exclusivo da esquerda!!! Dizer que algo é uma razão fundamental dos movimentos de esquerda ou de direita não significa rigorosamente nada, embora seja de ampla utilização. Ressuscitem o Hegel... E já agora, alguém acha estético um cravo vermelho na lapela de um casaco?
Viva Miguel! Gosto de vir ler o que escreves. Estou mais uma vez a tentar deixar-te um olá... vamos ver se fica ;) otília
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