segunda-feira, abril 24, 2006

A Revolução dos Cactos ou o 25 do 4

A classe política, aliada à persistentemente negativa conjuntura internacional e ao tradicional conformismo e passividade cívicas (ou cínicas?) da lusa gente, têm frustrado grande parte dos ideais que inspiraram e motivaram a Revolução dos Cravos. A arrogância ditatorial e o decano nepotismo atávicos do Estado Novo foram substituídos, desde 25 de Abril de 1974, pela instauração de um regime (questionavelmente) democrático que gorou legítimas expectativas de desenvolvimento, de mais igualdade de oportunidades e de maior justiça social.
Com efeito, ao longo dos últimos 32 anos têm-se desvanecido sucessivas oportunidades de desenvolver, descentralizar e mesmo democratizar e, não fossem o milionário financiamento e a exigente normatividade da União Europeia, Portugal estaria ainda mais afundado na cauda dos diversos rankings que classificam e comparam o estado dos Estados. Nunca as assimetrias sociais, demográficas e regionais foram tão grandes; nunca foi tão profundo e ingente o fosso que separa ricos e pobres, ao ponto de se ouvir dizer a muitos que preferiam que Portugal perdesse soberania a favor de uma Ibéria já há tanto tempo ponderada e congeminada. [Há quem, na identificação de culpados, remonte a 1 de Dezembro de 1640 e lamente a execução de Miguel de Vasconcellos!]
O que é certo é que, mais de três décadas depois, a via ultraliberal seguida (de capitalismo selvagem, desumano e ecologicamente desastroso) conduziu a taxas de desemprego inéditas, a emprego precário e a baixos salários. A carga fiscal que pesa sobre os portugueses é das mais elevadas da Europa e continua a aumentar, originando uma galopante perda continuada do poder de compra, mesmo com taxas de juro e de inflacção estabilizadas, controladas e relativamente baixas. Os sucessivos governos negligenciam sectores vitais da economia e dos serviços: privatizam desenfreadamente, desinvestem na educação, na saúde e na justiça, demitem-se de prioridades de acção reformadora efectivamente adequadas e necessárias, fomentam a irracionalidade burocrática, o clientelismo e carreirismo partidários, o caciquismo autárquico e a destruição de uma cultura de mérito e de competência.
Estou convencido que os progressos registados, que felizmente também os houve (nas acessibilidades, na habitação, nos transportes, na distribuição de água e no saneamento básico, na rede eléctrica, na escolarização, na internet, etc.), embora nem sempre ao ritmo adequado e com a qualidade desejável, decorreram mais de imperativos políticos subliminares, ocultados pela retórica demagógica da elite dirigente, do que de sincera vontade de responder aos anseios dos mais carenciados e pobres. Por exemplo, facilmente se constata que Portugal é um país excessivamente dominado pela banca, responsável em grande medida pelo hiperbólico endividamento familiar (118%!).
Ouçam-se os discursos solenes dos sucessivos governantes, de 1974 até hoje, e confrontemo-los com a realidade. Chega a ser trágico, nalguns aspectos, tirar conclusões desse cotejo! O paradoxo criado é evidente: actualmente, a evolução científico-tecnológica, com tudo o que ela permite em termos de bem-estar e de qualidade de vida, é inacessível à maioria e privilégio de uma minoria; o progresso material não é uniforme nem universal, o que faz da retórica política, pretensamente democrática, um grande e monumental embuste!
Fecham-se escolas, centros de saúde e maternidades, atravanca-se o litoral com o êxodo do interior; desresponsabilizam-se os governantes pelas más políticas e pela corrupção que favorecem, constituindo-se os partidos e os agentes políticos apenas como males menores e inevitáveis, e não como entidades dignas de credibilidade e confiança (curiosa a recente e inaudita falta de quorum de votação no Parlamento, em pleno mês de Abril); o sucesso educativo que advém da massificação do ensino oficial é irreal e fruto de um sistema laxista e permissivo; poucos podem aceder a bens e serviços de qualidade, só ao alcance de uma pouco democrática minoria...
Em suma, o 25 de Abril é hodiernamente, e cada vez mais, uma data cujo memorável sentido e conteúdo histórico cede lugar à espinhosa herança que se vai recebendo, pelo que, em vez de cravos, não tarda teremos cactos como sua flora simbólica, e aquele distante dia ainda não é apenas um indistinguível, discreto e indiferente 25 do 4, graças a... ser feriado nacional!

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3 Comments:

Blogger O Micróbio II said...

Resta-nos o feriado... afinal de contas é disso que o lusitano gosta! O resto são questões de pormenor! Não forces é a minha língua a dizer duas palavras sobre o 25-4... ainda hoje designo a intitulada "Ponte 25 de Abril" pelo seu nome original... exacto, "aquele-cujo-nome-não-pode-ser-mencionado"!! O seu a seu dono! :-)

11:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O micróbio parece ter saudades de um ácaro que se escondia nos seus hóspedes e sugou até morrer. Essa ponte não tem dono cérebro de micróbio.

3:48 da tarde  
Blogger O Micróbio II said...

Ainda está para se descobrir um desinfectante que consiga fulminar todos os ácaros, mas quem sabe... serás tu porventura? Ou teremos de esperar outro? :-)

6:51 da tarde  

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