segunda-feira, maio 29, 2006

Viriato, Quixote, Sebastião, Godot e a selecção

Estamos a poucos dias do início de mais um Mundial de futebol e, como é hábito nestas circunstâncias, a comunicação social dirige, até à náusea, os holofotes da informação para os deuses-jogadores da selecção, vendendo pela enésima vez a esperança de sermos os próximos campeões da internacional competição, optimismo cujo exagero apenas se justifica pelo fito de aumentar índices de audiência e receitas publicitárias. É a economia de mercado a jogar em pleno. Parece até que, de repente, as vitórias possíveis e sempre prometidas da selecção se constituem como paliativos ou factores de resolução das graves dificuldades que o país continua(rá) a atravessar. O que vale é que o período de competição dura poucas semanas e os portugueses são pioneiros e inexcedíveis no psicológico consolo de transformar toda as concretas derrotas em vitórias morais.
E como enquanto o pau vai e vem folgam as costas, enquanto se produz a anestesia mnésica da realidade no limbo mórfico e mórbido do futebolês, o socrático governo aproveita o tempo assim ganho de distracção popular para congeminar novas medidas legislativas que fingem ser benéficas e cuja ineficácia e inutilidade se desvelam afinal mais tarde, a tempo do início de mais um Mundial de futebol, configurando o nietzschiano eterno retorno ou ciclo vicioso do miserabilismo nacional que contrasta com o ostentar de camisolas, o agitar de cachecóis e o drapejar de bandeiras nas janelas e varandas. Tudo num cromático paroxismo de adereços que simbolicamente recordam que, mesmo fugindo aos impostos, conduzindo na estrada com ímpetos criminosos, desrespeitando o património natural que parece que ainda vamos tendo, ou cuspindo para o chão imundo que outros vão pisar, somos patriotas até à medula e com o alto patrocínio sazonal das hipermétricas lojas do sr. Belmiro.
Como campeões de oníricos vencimentos e embalados em uníssono hino coral, a lusa grei incessantemente nutre-se de uma saudade do futuro que adia para a próxima oportunidade as conquistas não logradas no presente, numa recusa da impotência inexorável perante os instantes decisivos. Reproduz-se a imagem da queda das máscaras das divindades no campo, arrastadas pelo choro convulsivo de simples e contingentes homens mitificados, porém com chuteiras de barro e nervos de palha. É o nosso esplendor na relva desde Eusébio em terras britânicas.
Viriato foi traído pelos seus, Quixote via gigantes que julgava derrotar na figura de humildes moinhos, Sebastião dissolveu-se no capricho bélico das vitórias antecipadas com a benção de Deus, Beckett fez-nos esperar por um Godot que não aparece... Não é por acaso que empresas de mobiliário de Paços de Ferreira estão a fazer uma campanha em que dizem devolver aos seus clientes o valor pago na aquisição de móveis, se Portugal vencer o Mundial na Alemanha. Ora, a fatalidade da derrota serve já de negócio e fonte de lucro, explorando um filão de desfecho mais que previsível e de contornos de despudorada necrofagia espiritual.
Prever o insucesso dos sucessores de Viriato é fácil profecia e inócuo pretexto para fazer de rico... sem gastar um tostão!

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3 Comments:

Blogger O Micróbio II said...

Sobre Fátima, a tua opinião é por demais evidente, sobre Futebol ficou aqui patente a tua opinião... bom só já falta o 3º F... aguardamos a tua opinião sobre o Fado! :-)

9:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Os dos móveis de Paços de Ferreira é que são espertos!

11:04 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

E lá vai, mais uma vez, a Selecçãozinha morrer na areia...

3:37 da tarde  

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