A vida do lado de dentro das palavras

A diversidade sociocultural reflecte, por conseguinte, a riqueza e a diversidade de códigos e sistemas linguísticos, que modelam distintos esquemas de representação do mundo, da vida e da morte, da sociedade, do Eu e do Outro, da transcendência e da imanência... A palavra é o traço identitário de uma nação, funda a proximidade e a distância sem necessária correspondência espacial, o comum e o alheio, o conhecido e o desconhecido; estabelece a convencional fixidez da legalidade jurídica com que se disciplina e regula a desmesura e o excesso da animalidade que em nós habita; preenche o vácuo da inefável sentimentalidade e da intrínseca indizibilidade das forças que governam a physis universal; é relato e póstumo testemunho dos pretéritos egrégios que trespassaram e que por ela revivem e ressuscitam em imortal diálogo; é vínculo de presentificação da ausência, de actualização da temporalidade consumida e de antecipação projectiva no devir; é campo fértil onde germina a fecunda imaginação criadora e em que se esboça o perfil da transfiguração catártica...
Em antónimo reverso se estrutura também o avesso de tudo isso: a palavra é emergência de beligerância e violência, vil comburente do ódio, da mentira e instrumento de censória divisão; é cimento dos muros da discórdia e entropia que corrói e degenera a possibilidade do precário apaziguamento logrado; é conhecimento convertido em criminosa autofagia e arma letal de destruição terrena; é território de espiritual dilaceração e angustiada dúvida...
O universo fixa-se nos limites assinalados pela palavra, tão incontornável na sua inexorabilidade que ela subsiste ainda fora das suas margens. Tudo se joga semanticamente dentro de si e na pragmática da sua ambivalência, nada de si exclui. A palavra é a pele dos sentidos, revestimento significante com que em pensamento nos apropriamos do mundo e dos seres, nominal substituto de configuração do ôntico objecto.
Por isso, a vida também se diz e se lê do lado de dentro das palavras e a morte é o lado de fora da vida. Daí que o princípio não foi Deus, porque no princípio era o Verbo!
Etiquetas: Ensaio
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