terça-feira, maio 16, 2006

A vida do lado de dentro das palavras

Todas as linhas de um texto brotam da etérea imaterialidade do pensamento, por sua vez sustentada na coeva materialidade da palavra falada, escrita ou gestual em que se erige; pensamento e linguagem são afinal os simultâneos elementos primordiais de construção existencial em que os sentimentos e emoções, ódios e afectos, crenças e razões, teorias e impressões se alicerçam, num lastro de mundividências colectivas e individuais que assim se tornam intercambiáveis por recurso à genética comunicabilidade dos signos linguísticos. A criação simbólica representa a abolição dos mudos silêncios e a instauração de universos paralelos que se interpenetram dinamicamente e se constituem como visões e perspectivações da realidade, tantas vezes conflituais e incompatíveis nos estr(e)itos quadros da interpretação e interpelação dessa mesma realidade concreta.
A diversidade sociocultural reflecte, por conseguinte, a riqueza e a diversidade de códigos e sistemas linguísticos, que modelam distintos esquemas de representação do mundo, da vida e da morte, da sociedade, do Eu e do Outro, da transcendência e da imanência... A palavra é o traço identitário de uma nação, funda a proximidade e a distância sem necessária correspondência espacial, o comum e o alheio, o conhecido e o desconhecido; estabelece a convencional fixidez da legalidade jurídica com que se disciplina e regula a desmesura e o excesso da animalidade que em nós habita; preenche o vácuo da inefável sentimentalidade e da intrínseca indizibilidade das forças que governam a physis universal; é relato e póstumo testemunho dos pretéritos egrégios que trespassaram e que por ela revivem e ressuscitam em imortal diálogo; é vínculo de presentificação da ausência, de actualização da temporalidade consumida e de antecipação projectiva no devir; é campo fértil onde germina a fecunda imaginação criadora e em que se esboça o perfil da transfiguração catártica...
Em antónimo reverso se estrutura também o avesso de tudo isso: a palavra é emergência de beligerância e violência, vil comburente do ódio, da mentira e instrumento de censória divisão; é cimento dos muros da discórdia e entropia que corrói e degenera a possibilidade do precário apaziguamento logrado; é conhecimento convertido em criminosa autofagia e arma letal de destruição terrena; é território de espiritual dilaceração e angustiada dúvida...
O universo fixa-se nos limites assinalados pela palavra, tão incontornável na sua inexorabilidade que ela subsiste ainda fora das suas margens. Tudo se joga semanticamente dentro de si e na pragmática da sua ambivalência, nada de si exclui. A palavra é a pele dos sentidos, revestimento significante com que em pensamento nos apropriamos do mundo e dos seres, nominal substituto de configuração do ôntico objecto.
Por isso, a vida também se diz e se lê do lado de dentro das palavras e a morte é o lado de fora da vida. Daí que o princípio não foi Deus, porque no princípio era o Verbo!

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