Uma página da vergonhosa história católica
Uma das páginas mais negras da história de Portugal, e talvez por isso convenientemente obliterada da memória colectiva, foi escrita há precisamente 500 anos, por força do secular conluio entre a sinistra e artificial Igreja Católica e a arbitrária autoridade real. O Édito de Expulsão de 5 de Dezembro de 1496 obrigava a sairem do reino português todos os judeus nele residentes que recusassem ser baptizados (ou evangelizados, para usar um ameno eufemismo), contrariando desse modo a régia vontade de D. Manuel I, disposta com carácter de lei no Conselho de Estremoz. Estava dado o primeiro passo para o estabelecimento em Portugal da Inquisição, em 1536, que, sob o lema "misericórdia e justiça", durante três séculos instalou o pesadelo, o terror e o medo em solo lusitano, mediante os tragicamente conhecidos «autos-de-fé».
Antes, no entanto, Lisboa foi palco de um massacre que vitimou cerca de 4000 judeus, entre 19 e 21 de Abril de 1506. Portugal vivia um período de seca e de fome, agravadas pela peste que dizimava milhares de pessoas, a ponto de el-rei D. Manuel ter fugido da capital indo refugiar-se em Évora. Os judeus foram considerados culpados pela conjuntura atroz que se vivia, com o dominicano beneplácito que instigou a plebe ao ódio pelos descendentes de Judá.
No tomo II da sua "História de Portugal" (Livraria Bertrand), Oliveira Martins escreveu a propósito deste triste episódio, que aliás se inclui no vasto livro negro da história da igreja papal romana. Vale a pena ler o seguinte excerto, impressionante no efeito visual que suscita:
"As mulheres agitavam-se coléricas pronunciando ditos obscenos, palavras descompostas, à mistura com as expressões de refinada devoção e de um fervente beaterio. Incitavam os homens à matança; e, do púlpito, o frade, oráculo do céu, definia com palavras o sentimento da multidão. Os judeus eram a causa da fome, eram a causa da peste! De cruz alçada, saindo da igreja, os frades vinham clamando, heresia! Heresia! Concitando o povo à matança.
Já houvera sangue, já crepitava o lume; e a cor rubra e os primeiros ais dos moribundos exacerbavam, como um touro, a fúria da plebe, açulada pelos sermões dos frades energúmenos. Desencadeou-se a tempestade, rebentando numa hora a cólera reunida em muitos séculos. Cresceram as fogueiras no Rossio e na Ribeira; e os bandos iam caçar pela cidade os judeus escondidos, invadindo as casas. Traziam-nos às manadas de quinze e vinte, amarrados, feridos, cuspidos, semimortos; e lançavam-nos, aos montes, nas fogueiras. As chamas crepitavam, e os gritos dos moribundos conseguiam ouvir-se por entre o vozear da plebe. Os sinos dobravam a rebate, chamando os fiéis à matança. (...) No primeiro dia, domingo, não faltou gente: matou-se meio milhar. Na segunda-feira eram já mil e quinhentos os que andavam na faina da matança. As justiças tinham fugido, o povo escondera-se, os judeus aferrolhavam as portas, enquanto os escravos acarreavam lenha para as fogueiras, os bandidos assaltavam as casas com vaivéns e escadas. Arrancavam as crianças do colo das mães desesperadas, e, tomando-as pelos pés, esmagavam-lhes os crânios tenros contra os muros. As casas escorriam sangue, que se precipitava pelas escadas vindo reunir-se em poças nas ruas. Havia um cheiro nauseabundo de carne queimada, risadas ferozes nos rostos dos pretos, os olhares terríveis na face macilenta dos frades, que pregavam à esquina das ruas. Os desgraçados corriam às igrejas perseguidos, rojavam-se nos altares abraçados aos santos e aos sacrários, e dali eram levados à fogueira arrastados pelos sicários. Na segunda-feira mataram-se mais de mil. Na terça acalmou a fúria porque já não achavam quem matar. Três dias e duas noites durou a orgia; e no fim contavam-se mais de trezentas pessoas queimadas, mais de duas mil mortas, e não se sabe quantas mulheres, chorando com amargura a sua viuvez, a sua orfandade, a sua miséria, a sua desonra."
Comparado com os métodos utilizados pela Igreja Católica - de excepcional grandeza referencial! - poder-se-ia perversa e maliciosamente dizer que os campos de concentração nazis e soviéticos primaram pela discrição e que, afinal, Hitler e Stalin não eram absolutamente destituídos de pudor ou sensibilidade. Mas em matérias tão violentamente desumanas e degradantes como estas, as alternativas são dilemáticas na apreciação das instituições: entre umas e outras, venho o diabo e escolha!...
Etiquetas: Religião
2 Comments:
Assunto: Juízo crítico à luz da história.
Meu amigo
Concordo consigo em muita da sensibilidade que revela a sua preocupação típica de um cidadão nascido na segunda metade do século XX, porventura.
Consciente, porém, de que, embora Católico, seu contemporâneo, deva sublinhar a ressalva de que os tempos não são os mesmos.
E importe interrogarmo-nos se os agnósticos daquela época seriam assim tão diferentes?
Se os católicos de hoje ainda assim o são?!...
Serão?!!...
Tal e qual muitos dos agnósticos de hoje que, facciosamente, se esquecem que é de ontem e não da categoria sociológica ou outra que o problema deve ser levantado.
Responder com preconceito ao preconceito é o mesmo que promover a sua apologia.
Diga não à violência!!!! (faz bem)
Mas também à discriminação!!!!!
Venha esta de onde vier...e não apenas dos suspeitos do costume.
Continue agnóstico, se assim o aprouver, mas não siga exemplos negativos do passado, ainda que de outras categorias de organização do pensamento humano. Respeite-as conforme a sua sensibilidade assim o revela. E subscrevo ou poderei subscrever completamente.
Quiçá, como muitos daqueles contemporâneos, por ignorância ou outras razões históricas, geográficas ou ainda civilizacionais, assim o fizeram. Infelizes, ontem. Hoje?...
E., português nascido em 1969, felizmente...
PS
A propósito, assim "reza" alguma história (José Hermano Saraiva - se bem que imagine não ser esta a sua "cartilha"):
Dom Manuel quando regressou a Lisboa vindo da chamada província onde se encontrava quando os massacres se deram, mandou, ordenou... era assim naquela época, em que era o Rei que dirigia quando o poder dos homens (Clero Maior) que ocupavam a Igreja assim o permitia... que prendessem os mandantes.
Na sua maioria, um pequeno número de representantes do Clero Menor que, do púlpito da sua ignorância, haviam liderado a culpa moral da história. Homens daquela época...onde como se sabe era, sobretudo, na Igreja que o poder morava.
Mais tarde, começou-se ouvir falar de Maçonaria(s).
Seguiram-se os senhores do capital distribuído pelos títulos cotados nas mais diversas bolsas sediadas na sociedade de informação em que vivemos.
Os mesmos a que o senhor austríaco-alemão de má memória a que o amigo alude, legou herança e fraca história. E, em meados de julho do corrente ano de 2006, nos conduzem para um conflito civilizacional de contornos imprevisíveis.
Como vê, mudam-se os tempos mas não se mudam as vontades. E à margem da evolução civilizacional, os perseguidos de ontem tornaram-se, ou ainda se tornam, os perseguidores de hoje.
E se urge aprender a lição, não seria hora de deixarmos de olhar para a cor da bandeira dos nossos vizinhos?...(e) respeitá-los.
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