O Decálogo que faltava
A hilariante Igreja Católica publicou mais um interessantíssimo texto, com 36 virtuosas páginas, determinando sobre comportamento no trânsito e chegando mesmo a elaborar os dez mandamentos do condutor. Não há dúvida de que a providência divina tarda, mas, na insondabilidade dos seus desígnios, não deixa de vir, desta feita sob iluminação inspiradora (a EDP tem forte concorrência!) das cabeças cardinalícias cujas cãs transpiram solene sapiência. Aliás, do Vaticano emanam directivas mais influentes do que as da Casa Branca e mais prestigiosas do que as inócuas resoluções da ONU e, por isso, das duas uma: ou finalmente vão acabar os acidentes de viação, ou o inferno terá de ampliar significativamente as suas instalações e, neste caso, o incremento de multas de trânsito será tal, que os agentes da BT não terão mãos a medir e o défice do Estado, pelo menos o português, terá os dias contados. Afinal, com a palavra de Deus, via mediação papal, não se brinca e, além disso, uma religião que tenha uma brecha, uma só brecha que seja, é uma religião rachada e, logo, mal amanhada e mais atreita a meter água suja em vez de água benta!
Doravante, até entre os condutores se irão recrutar putativos candidatos a santos do panteão católico, incitando os utentes do volante a uma condução a caminho da santidade. E tanto assim é, que nos bem-aventurados conselhos se recomenda que "cada viagem seja iniciada com o sinal da cruz, colocando os passageiros sob a protecção da Santíssima Trindade". Oxalá ninguém se esqueça de tal prolegómeno ritual, embora não se esclareça se o mesmo deve ser feito antes ou depois de pôr o cinto de segurança...
Mas há dois mandamentos em particular que se destacam. O quinto, que ordena "que o automóvel não seja um lugar de dominação e nem lugar de pecado": o pormenor clínico desta igreja romana é minucioso e até desmancha-prazeres, visto que este preceito cristão passa a interditar a consumação de calores eróticos e genitais dilatações que se desencadeiam nas parcerias rodoviárias; ou seja, acabam-se as quecas nos carros e demais viaturas de todas as cilindradas. E, estando nós numa economia global, a Kleenex e a Durex que se cuidem!
O outro mandamento que também me mereceu especial atenção é o oitavo, que refere: "reúna-se a vítima com o condutor agressor em momento oportuno, para que possa viver a experiência libertadora do perdão". Mas, o "momento oportuno" é antes ou depois da sova de pau entre ambos? E, se a vítima morre, quando é esse redentor momento? Por outro lado, ou muito me engano, ou as pessoas mais propensas à adrenalina e a novas experiências não vão enjeitar a oportunidade para "viver a experiência libertadora do perdão", provocando acidentes voluntária e desnecessariamente só para experienciarem semelhante catarse, pelo que tal mandamento poderá ser perverso e contraproducente. Contudo, é provável que Iavé, mesmo perfeito, não tenha carta de condução e esse detalhe casuístico lhe tenha escapado...
Posto isto, como angustiado cidadão lusitano, fico a aguardar pelos Decálogos para o autarca, para o banqueiro, para o construtor civil e promotor imobiliário, para os cursos de Engenharia na Independente e para o sector privado. Para já, abençoada seja a Santa Madre Igreja, que até devia pensar em abrir... escolas de condução!
3 Comments:
Acredito que deves ter ficado mesmo muito preocupado com este dacálogo... e que nem dormiste a pensar se o vais cumprir!!!
É óbvio que a necessidade humana de andar depressa, por ser mortal (o tempo cá na terra é pouco), leva a que estejamos bem à frente de Deus que deve ter estado a dormir nos últimos, vá lá, 5 séculos (não precisa de correrias por ser imortal) e daí que acordou e disse: Fooo... Estes gajos são malucos, pá! Deixa-me ligar ao Gregório ou Pio ... Ó Gabriel quem é o gajo lá da coisa que manda naquela merda, lá em baixo ...?
Ah! tu és a favor da "consumação de calores eróticos e genitais dilatações"?! grande pecaminoso!... esperam-te as chamas do Inferno!
Abraço, mesmo assim.
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