quarta-feira, agosto 15, 2007

O dia em que fui Deus

Adquiri o pouco costumado hábito de trazer sempre no carro uma ou duas latas de comida para cão. Foi uma ideia que me ocorreu há um par de meses, depois de me enfastiar de assistir involuntariamente ao drama recorrente dos animais domésticos abandonados nas ruas e estradas por este país fora. É doloroso ver cães e gatos a deambularem perdidos, angustiados, esfomeados, exaustos de consumição e dilacerados, numa mortificada alienação de que são inocentes vítimas dos irresponsáveis, traiçoeiros e abomináveis donos. Muitos destes infelizes animais de companhia jazem mesmo no meio ou nas bermas das estradas, atropelados de morte, os corpos esmagados e esventrados pelas rodas velozes dos incautos e indiferentes condutores, aí apodrecendo numa atroz solidão, até que deles restem apenas indícios de pêlos sobre a mancha criada pelo sangue derramado. Nem da dignidade de uma condizente e adequada sepultura beneficiam, humilhantemente malogrados até à última molécula e vestígio da matéria que eram...
À aparição de um cão abandonado (os que já vi fariam a maior alcateia do mundo!), apodera-se de mim uma inquietação tal que, perante estas vidas cruelmente descartadas, questiono a racionalidade que à espécie humana se atribui, a respeitabilidade, o pundonor, a nobreza e a autoridade moral que deveria advir da nossa suposta superioridade. A maldade do sapiens tem a incomensurável grandeza do Universo, sempre ilimitado e em expansão. Sou dos que pensam que avaliar o nível de progresso civilizacional de um povo ou sociedade se faz sobretudo a partir de dois indicadores: o modo como se protegem as crianças e se respeitam os outros animais. E, nestes aspectos particulares, o colectivo humano deixa muito a desejar, tantas são as culturas que instrumentalizam outras espécies em bárbaros exercícios de entretenimento circense, em estúpidos e inúteis rituais religiosos, em ilegal e desapiedada caça furtiva ou em intensivas explorações agropecuárias, que em muito transcendem e excedem a alimentar condição humana de predador omnívoro.
Assim o Homem se compraz na gradual extinção da fauna que Noé algum pode inverter, nutrindo o seu vil egoísmo com a intrínseca perversidade que mobiliza e desvenda no seu tenebroso comportamento. Nem a cultura dissimula já (ou ainda?) a selvagem índole dos ancestrais primórdios e, com isso, é a Humanidade que a si mesma se abandona...
Mas por que razão escrevo sobre este tema? É que utilizei ontem a primeira lata de comida, inaugurando o objectivo de minorar, dentro das minhas possibilidades, o sofrimento de um rafeiro faminto que, esquálido, sujo e com uma doença de pele visível, lambia no pó do chão de uma rotunda, desesperado e já em desistência denunciada pela cadência lenta das suas débeis passadas e no meio do trânsito. Depois de ter improvisado um estacionamento para o carro, de chamar a atenção do pobre canino e de depositar o conteúdo da lata numa berma mais segura, testemunhei o mais singelo banquete da Terra, o comensal mais aliviado após a gástrica ausência de forçado jejum, a degustação mais pungente, agradecida e deliciada... Comecei a chorar, numa ambiguidade de satisfação, ternura e de dorida impotência; deixei o animal, evitando iminentes laços de uma gratidão e fidelidade que não poderia retribuir nem prolongar. Apenas aquele gesto ao meu alcance, de lhe adiar a morte com um pequeno grande prazer, me serviu de pontual consolação. Poucas vezes experienciei maior felicidade.
Nem Deus, se existisse, sentiria o providencial poder que senti em, mesmo que brevemente, intrometer-me no curso de uma vida e em ser o destinatário do olhar mais reverente, carinhosamente grato e afectuoso que se pode dar. Que bom seria se, pelo menos, a fatal infelicidade destas inocentes criaturas encontrasse uma pausa na bondade de outros deuses com que se cruzassem; e tudo por menos de um euro - basta ter... lata!

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não sei como é que alguns donos têm coragem de abandonar os cães...é uma crueldade.
Esperemos que um dia isto deixe de acontecer.

3:48 da tarde  
Blogger Liliana Matos said...

Nunca deixe de "ter lata", pois muitos serão os felizes com tão simples, mas importantíssimo, acto.

Bjs
Até sempre


Liliana Matos

12:15 da manhã  
Blogger Texuga said...

Post brilhante. Quanto aos actos dos "donos" destes animais, e puxando a brasa à minha sardinha, quem é que temos de subornar para que que exista no Código Penal o seguinte preceito: Quem, de forma consciente e intencional, depositar o seu animal de estimação na via pública, querendo com tal acto isentar-se da sua responsabilidade de "dono", é punido com pena de prisão de 3 a 5 anos, ou com pena de multa de X.~
E depois era só dar formação às forças da autoridade para que ao verificarem situações de abandono, ou ao receberem denúncias dos particulares, comunicassem ao Ministério Público o crime. As simple as that.

9:32 da manhã  
Blogger joshua said...

O teu testemunho de humanidade e sensibilidade vale ouro assim como o teu texto.

Foste deus, sim, cooperaste com a vida e com ela foste solidário. Nessa tua hora comovida não houve outros, não houve o "se outros o fizessem, se outros agissem": foste tu, somente tu, quem, enorme, agiu.

Se Deus existisse, para mim, é também isso precisamente o que, humaníssimo, foste e fizeste.

Abraço

joshua

8:29 da tarde  
Blogger O Micróbio II said...

A caniche que tenho em casa, agradece o tratamento que deste a tão sublime rafeiro... assim como dois rafeiros a quem vou mimoseando com umas imponentes salsichas para cão que costumo comprar no modelo quando lá vou. Quanto às restantes analogias que por aqui fazes... as acções sempre tiveram mais valor que simples palavras...

Deixa-me só realçar este ponto com o qual estou completamente de acordo contigo:
"Sou dos que pensam que avaliar o nível de progresso civilizacional de um povo ou sociedade se faz sobretudo a partir de dois indicadores: o modo como se protegem as crianças e se respeitam os outros animais."... pois, resta é saber se nesta tua preocupação incluis TODAS as crianças...

8:54 da tarde  

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