domingo, março 23, 2008

A «paixão» educativa

O divulgadíssimo incidente que ocorreu há dias numa sala de aula de uma escola portuense (e não é seguramente uma escola que se possa referenciar como socialmente problemática), em que, por causa de um telemóvel, uma professora foi grotescamente desrespeitada na sua integridade física por uma aluna e perante a insolente passividade e complacência de colegas da turma - que se divertiram com o triste espectáculo e um deles teve até a oportunidade de usar o telemóvel para filmar com minúcia de realizador o desenrolar do drama -, ilustra à saciedade o deplorável estado de degradação das rotinas escolares e a preocupante agudização dos conflitos que caracterizam o ambiente relacional de muitas escolas no país. Apesar de as estatísticas registarem um professor agredido por dia e dos casos que têm vindo a público, a sinistra personagem que tutela a Educação teima em debitar a asserção de que "não há clima de violência generalizada na escola", tapando o sol com a peneira da sua má fé, desvergonha e autista arrogância. Acaso alguma singela vez teve a ministra a dignidade e a elevação de dirigir uma palavra de apoio aos docentes maltratados?
Indirectamente, esta ocorrência na Escola Secundária Carolina Michaelis é reflexo da incompetência, da ignorância e da irresponsabilidade políticas dos sucessivos governos, os quais, entre outras coisas, têm simultaneamente fomentado a impunidade discente e desprestigiado a profissão docente e a dignidade do saber, relevando apenas a permissividade e o facilitismo na avaliação dos alunos e o correspondente interesse no sucesso fácil e demagógico. Não é por acaso que, no passado dia 8, quase 2/3 dos professores se manifestaram em Lisboa.
Quem não é professor, ou não trabalha numa escola, desconhece a enorme dificuldade que existe em manter a disciplina na sala de aula e nela exercer com a necessária serenidade a autoridade que a um professor incumbe. Fazê-lo com eficácia implica remar contra uma correntosa maré de maus e contraproducentes hábitos adquiridos na informalidade da educação familiar e comunitária, tantas vezes desestruturada, alienante ou desculpabilizadora. Um crescente número de alunos, das mais variadas proveniências sócio-económicas, evidencia indiferença e desrespeito por regras elementares de convivencialidade entre pares e para com os adultos; pelo contrário, chegam a adoptar ostensivamente comportamentos de grave e perturbadora incivilidade (insultos permanentes, linguagem gratuitamente eivada dos vocábulos brejeiros que escutam dos seus agentes de socialização, incompreensão dos normativos internos, etc.), tornando a sala de aula - como a de cinema ou a do teatro - numa extensão recreativa do café, da discoteca ou de uma festa de aniversário...
Entretanto, o facto de a professora aqui em apreço - que já está no topo da carreira - só ter feito queixa da aluna após a difusão das imagens na net e nas televisões, é bem elucidativo da opressiva e hostil atmosfera de intimidação que vivem hoje os professores nas escolas, só comparável com os tempos do 24 de Abril. Claro que a docente ofendida revelou falta de bom senso e inaptidão no adequado exercício da autoridade, pois apropriou-se à força de um objecto alheio que não tem legitimidade de confiscar (só os agentes da autoridade têm tal legitimidade e apenas em situações especiais): se tinha razões para agir disciplinarmente sobre a aluna, deveria dar a esta ordem de expulsão da sala de aula e lavrar posteriormente a respectiva participação ao director de turma, pura e simplesmente.
Porém, a inédita desorientação geral por que passa a classe docente até torna compreensível atitudes mais irreflectidas, sobretudo quando, como agora acontece com mais frequência, se descobre que em cada vez mais alunos há uma mariadelurdesrodrigues escondida. E isso não augura nada de bom ao ensino. Neste país, a política educativa é anunciada como uma «paixão», o que até é verdade - é uma «paixão» maior do que a de Cristo e até são mais os mártires que provoca!

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