quinta-feira, março 16, 2006

Andar na rua, ouvir e não escutar

Multiplicam-se os exemplos que levam à constatação de que andar na rua é, em Portugal (e não será certamente caso único no mundo, mas com o mal dos outros podemos nós bem!), um exercício não apenas físico, motor, mas também de desafio à paciência, ao comedimento e uma exigência de alheamento sensorial, que obriga à simulação de cegueira ou surdez, como se as áreas dos lobos occipital e temporal do cérebro ficassem subitamente inactivas ou deixassem momentaneamente de funcionar.
Da buzinadela que surpreende e assusta à aceleração forçada e a despropósito; do chiar estridente do pneu ao cavernoso e grosso escarro que alveja a calçada; do papel amarrotado e da embalagem amolgada lançados para o chão à beata acesa de cigarro projectada pela janela do carro ou de casa; da insolente e lenta travessia do peão fora e dentro da pass(e)adeira à ruidosa e fumarenta passagem do veículo que transita; do passeio que serve de latrina do dejecto canino e que se aloja na sola do sapato ao despudorado vernáculo foneticamente amplificado, há todo um cardápio de comportamentos que, com a maior probabilidade e facilidade, obtém a imediata comprovação empírica necessária à refutação e eliminação de qualquer dúvida. Aqui, não há lugar para cépticos, basta sair à rua!
E por falar em vernáculo: se as forças e a coragem não me faltarem, ainda hei-de fazer uma antologia de pequenos excertos de dialéctica mundana e profana, recolhidos espontaneamente nas minhas deambulações pelos lugares públicos, pelo que advirto desde já que a linguagem usada poderá ferir a sensibilidade de todos os que habitualmente não saem de casa. Daí a bolinha que figurará no canto superior direito destes posts e o título de «Diálogos Imperfeitos». Simultaneamente, demarcar-me-ei do pagamento de direitos de autor.
A conclusão que se poderá tirar é que há muitos dicionários incompletos em virtude da ausência de entradas: há termos que, de tão banalizados pela oralidade quotidiana, mereciam já a sua inclusão, em lugar de honra, em todas as edições dos livros semânticos de português.
Por ora, por aqui me fico, blindando o ouvido para o combate sonoro a travar.

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