quarta-feira, maio 10, 2006

O dialéctico exercício do contraditório / 1 - 3ª Parte

Caro micróbio, retomo o fio da argumentação onde o tinha deixado e para a concluir.
13. Em toda a tua reflexão tens subjacente, pelo menos é isso que transparece, que a religião-ficção afronta o "corpus" dogmático da crença, como se houvesse um só cristianismo - o católico -, e não uma profusão de interpretações que originaram (e ainda originam) ainda outras tantas confissões, que nem o nazareno carpinteiro patrono é factor de ecuménico entendimento. A este propósito, lembra-te que o pior inimigo dos dogmas católicos são as próprias Escrituras, já que estas os refutam peremptoriamente, motivo por que se impôs na Igreja Católica, praticamente desde o início, que a "Tradição" (as convicções subjectivas da elite patrística) tenha uma importância igual, mas que acaba por ser superior, ao das Escrituras, que supostamente, estas sim, são a palavra de Deus.
A Igreja Católica continua a endoutrinar a sua grei através do catecismo e de textos manipulados e truncados escandalosamente, evitando a leitura directa e discutida eucaristicamente (como o fazem, e bem, outras confissões cristãs) da Bíblia, sem a desvirtuar com anotações extemporâneas. Aliás, João de Médicis, mais tarde Papa Leão X (1513-1521), numa carta dirigida ao cardeal Bembo, conforme atestou o seu contemporâneo Pico della Mirandola, resumiu há muito o pensamento mais íntimo e inconfessável da cúpula católica: escreveu o leonino papa que «Desde os tempos imemoriais que se sabe quão proveitosa nos tem sido esta fábula de Jesus Cristo». Foi um papa e não um reles cónego de província quem escreveu cinicamente esta asserção, e não era gnóstico...
14. Assim, estabeleceres um certo paralelismo entre os escritos gnósticos e as actuais produções literárias heterodoxas / heréticas é, no mínimo, forçado e discutível. Só o teu fervor religioso (ou voluntarismo?) o justifica. Além disso, os escritos dos séculos II e III não são inválidos por não terem sido escritos no século I; o Evangelho de João foi escrito em finais da primeira década do século II (por João, o Ancião, um grego cristão, e não pelo apóstolo homónimo) e com base nas memórias de João, o Sacerdote (judeu), e não é por isso que deixou de ser texto canónico.
Os critérios de selecção que tornaram proscritos os Evangelhos apócrifos são um bom mistério que daria um novo "código da Vinci", mas isso já é outra história... A afirmação que citas de Ireneu de Lyon, do "Adversus haeresis", é a prova da arrogância e arbitrariedade eclesial, que já vem dos primeiros tempos, e das mentiras forjadas para amaldiçoar os hereges. Toda a interpretação que não fosse a oficial era censurada e humilhada (mais tarde perseguida e alistada no Index); mostra-me, micróbio, uma prova de um autor gnóstico que tenha «mudado de pensamento segundo os tempos, sem ter uma única opinião estável». Essa sentença de que «preferem disputar acerca das palavras em vez de se converterem em discípulos da verdade» é testemunho imortalizado da imposição de uma única verdade, como se no joio metafórico das Escrituras se concluísse o trigo de uma só verdade. Antes não ter "a" verdade e mudar de pensamento do que, como o inenarrável Ireneu, acreditar que a Terra é o centro do Universo e tem quatro vértices (que grandes e iluminadas verdades tinha!)... E ainda citam e dão crédito a estas personagens tragicamente cómicas!
Por outro lado, foi em meados do século XX que o Concílio Vaticano II admitiu que a liberdade religiosa é um direito de qualquer pessoa, contrariando as convicções anteriores, como a do Papa Gregório XVI que, em 1832, condenou «aquela absurda e errónea opinião, melhor dizendo, delírio que consiste em garantir a todos a liberdade de consciência». Ricos papas teve a Igreja de Roma! Valeu a Ireneu ter vivido no século II, poupando-o assim às deambulações e inflexões teológicas instáveis dos seus sucessores "colegas" de fé e ortodoxia...
15. A tua avaliação da «moda da religião-ficção» não me parece, portanto, a mais correcta, rigorosa e imparcial. Se há ingenuidades religiosa e laicista, considero indesmentível. Embora a primeira seja menos sustentável que a segunda; alicerçar na «falta de cultura de fé» (ó que é isso? a tua fé?) a ingenuidade laicista parece-me simplista, redutor e um não argumento: antes, deves definir "fé"; de que tipo de "cultura" se trata; e se há só uma autêntica fé, justificando-a.
16. Mas apesar de tantas divergências contigo, amigo micróbio, acabo por concordar com a tua conclusão. Há, com efeito, uma «depauperada cultura religiosa, literária e histórica da maior parte da população, capaz de acreditar em algo pelo simples facto de o ver publicado». Mas é precisamente por isso que também há crenças e religião; e que o milagre de Fátima - um dos embustes oportunistas da instituição que defendes - e o nacional culto mariano existem, entre outras credulidades afins (confronta isso com o escrito em Êxodo 20 e 34; ou em Salmos 115, etc.). Claro que é politicamente incorrecto e especulativo defender que «os gostos do grande público (...) são medíocres»; se calhar, é por isso que há inúmeros católicos!
Chegado aqui, julgo que já estou a ser aborrecido e chato e a abusar do tempo de antena. Apesar de ter escrito mais do que o que devia e menos do que queria, e de estar ciente de que é impossível esgotar o assunto, espero que não leves a mal polemizar contigo e que, mais uma vez to digo, saibas que a nossa amizade é proporcional às nossas divergências.
Um grande e cordial abraço!

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Desculpa me intrometer, mas parece não haver resposta para as evidências.
Obrigado, por descrever na perfeição (se tal existir)o que vai na "alma" de muita gente. Alías, se houver o tal "Deus" com as características omnipresentes, omniscientes e omnipotentes, só nos poderia perdoar por já saber que seriamos ateus logo à nascença (o nosso destino). Aliás, quando criar o meu blog, gostaria de abordar esta expressão e crença absurda de - "É o destino".

11:11 da manhã  

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