terça-feira, maio 09, 2006

O dialéctico exercício do contraditório / 1 - 2ª Parte

Meu caro Micróbio:
Retomo no ponto onde a deixei, a réplica iniciada ontem a propósito do conteúdo do teu post "A moda da religião".
6. Concordo quando afirmas que «trata-se sobretudo de vender», bem como com a ideia de que «pode-se vender hoje o oposto daquilo que se vendeu ontem» (é o que faz a tua Igreja através de, por exemplo, concílios e encíclicas papais!). Por isso, a religião-ficção tem toda a legitimidade para descobrir o filão para vender, servindo-se afinal da mesma ambição da "ficção-religião" (católica ou outra) no sucesso obtido em tal desiderato. Não será presunção tua afirmares que a religião-ficção «não tem valor»? Já não estamos no tempo de impor censoriamente aos outros juízos estéticos e/ou éticos. Será que, só por afrontar dogmas secularmente instituídos, uma obra herética "não tem valor"?
As campanhas das editoras destes livros, por maiores que sejam, duvido que alguma vez façam sequer sombra concorrencial ao marketing, directo e indirecto, da Igreja Católica (que devia ser palestino-israelita e é romana!). "Os amores de Madalena (que os teve!) e outros, poderão bem ser títulos inventados, mas não há mácula nisso, pois a criatividade com que a igreja papal deturpa as Escrituras é difícil de bater. Já agora, mais dois títulos inventados para a tua irónica lista: "A esquizofrenia de Moisés" ou "O corcunda de Tarso", que poderiam perfeitamente figurar nos expositores de livros e outros escaparates.
7. Concordo igualmente com o virgiliano "sacra auri fames": para entender toda a moda da religião-ficção há que entender previamente a ganância da ficção-religião; é pagar na mesma moeda ou provar do próprio veneno. Não podem ser só as religiões instituídas a ter a «sagrada fome do ouro» e a submeter os crentes (ou crédulos?) a sacrificiais dízimos e penitenciais ladaínhas cobradas, com que se compram as edénicas assoalhadas celestes e eternas. Isto apesar de, com isso, se dar a Deus o que é de César...
8. Curiosa contradição: depois de defenderes que o propósito da religião-ficção é «vender bem» (a tal "sacra auri fames") o que «não tem valor», qual zurrapa "engarrafonada", admites que «nalgumas obras da literatura religião-ficção sobressai o que se pode chamar "nostalgia da fé". Embora a tua Igreja tenha, durante séculos, imposto a sua fé a ferro e fogo (estranha atitude cristã!), a fé não se impõe nem se empresta, mas pode vender-se e comprar-se! Falando por mim, se leio e escrevo de e sobre religião, não é por "nostalgia da fé": a que tive não foi escolhida, mas imposta no processo de socialização a que fui familiarmente subordinado, formatada por tradição cultural, com a força persuasiva - e catequeticamente intimidatória! - que isso implica. A penúltima coisa que me pode acontecer (a última é morrer e eventualmente ir parar ao inferno) é ter «um certo complexo de inferioridade em relação à Ciência e à Modernidade»; privilegio apenas o esforço persistente de racionalidade cognitiva, crítica e ideológica. Nunca me ocorreu ir à Igreja quando estou doente ou precisar de ser operado, pois reputo os médicos e estabelecimentos de saúde mais eficazes que curandeiros, exorcistas ou monólogos oratórios receituais; e se médicos e hospitais existem não é, presumo, por complexo de superioridade!
9. A Bíblia é uma narração apologética e não histórica, e parece que ignoras isso. Por conseguinte, ninguém inventou mais do que os autores bíblicos, sendo a ideia de "revelação divina" (tão infantilmente ridícula; valha ao menos que o ridículo não mata...) uma prévia invenção colossal e magistral, prontamente desmentida por uma rigorosa, lúcida, séria, objectiva e intelectualmente honesta exegese dos textos. Por exemplo, que dizer das profecias escritas após os acontecimentos a que se referem terem acontecido? O que dizer da ficção apologética neotestamentária criada à volta da vida historicamente concreta de Jesus?
Ninguém modificou mais os dados de fé que a Igreja a que pertences, e a Bíblia é, por si, esotérica, doutrinal e idiossincraticamente, esoterismo esse intrínseco às próprias tradições judaica e cristã.
10. O Cristianismo tem pelo menos uma semelhança com a Democracia: a maioria pode não ter razão! É o que, penso, acontece: creio que o mundo cristão, e os das outras confissões, está enganado (e a sua elite clerical engana!) há 20 séculos e falsifica a realidade. [Anteriormente, vários mitos e lendas prevaleceram por muito mais tempo, basta investigar um pouco sobre culturas ancestrais e respectivos cultos de adoração.]
Sobre isso, apenas solicito o recurso ao confronto entre conhecimento científico e credulidade religiosa, entre a prova empírica e tangível e o dogma fideísta e só tangível a uma exígua minoria já cadáver (como a vida depois da morte). Com isto, e ao contrário do teísta, não cometo a falácia da petição de princípio, nem creio que o Big Bang tenha originado Adão e a sua consorte, mesmo que tudo isso seja falso.
11. Só o Papa tem veleidades de difundir "urbi et orbi" as suas magnânimas mensagens, na sequência aliás do nominal catolicismo (= universalismo). Presunção e água bent(o)a...
12. O gnosticismo da Igreja primitiva foi um movimento de pensamento que, tal como o que veio a (de)generar em ortodoxia dominante: i) «está conectado com crenças antigas» [lendas e mitos mesopotâmicos, babilónicos, persas, caldeus, assírios, egípcios, gregos, romanos, etc,]; ii) «confluem ideias orientais [lendas sobre Baal, Hórus, Osíris, Mitra, Shiva, Baco, Ausónio, Adónis, Dioniso, Krishna, Buda, etc.], traços de platonismo [dualismos cosmológico e antropológico], juntamente com religiões misteriosas secretas». Qual a diferença significativa quanto a influências? Ou queres acusar o granito de não ser como o basalto e, por isso, não se classificar como rocha? O Sol não se tapa com uma peneira, mesmo em dias nublados... Cristianismo e Gnosticismo são ambos sincretismos!
Espero, numa terceira parte, concluir a réplica ao teu texto. Até breve e um abraço!

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