segunda-feira, fevereiro 27, 2006

De outros carnavais...

De Veneza ao Rio, passando por Torres Vedras e Loulé, a malta exulta pela chegada de mais uma noitada em branco motivada pelo Entrudo, festa que - ao menos uma vez no ano! - quebra toda e qualquer solenidade, formalismo e inibição, recomendando até a exigência de disfarces, máscaras e similares aparatos que escudam toda uma orgia de cores, veleidades, insinuações, ousadias e actos destemidos que... ninguém leva a mal! Que máscaras pomos por cima da que usamos o resto do ano? Não seria melhor inverter o procedimento e deixarmos cair 'a' máscara que oculta o que somos, em vez de a sobrepor com mais máscaras?
Vistas bem as coisas, não será Carnaval o ano inteiro? Veja-se grande parte da classe política, com os seus desfiles contínuos de brincadeiras de mau gosto, de palavras irresponsáveis, atitudes irreflectidas e comportamentos impunes que já ninguém leva a sério... A Assembleia da República e o Conselho de Ministros devem ser dois dos locais mais espantosos de exibição de máscaras, de cortejos de vaidades, de espectáculos inebriantes e efusivos onde se expõem os adereços mais ridículos e apalhaçados que se vestem e dão a vestir. Fornecem grandes doses de medidas desmedidas. E por isso tanto fazem rir.
O que vale é que a malta é porreira, tá-se bem e parece que até gosta de os imitar! E rir é a melhor maneira de fingir que não estamos a chorar...

Etiquetas:

Dificuldades de neófito e livro de estilo

No que eu me meti... No início, há cerca de um mês, não imaginava a dificuldade por que tenho passado em fornecer conteúdo a este blog, mesmo que modesto nos seus interesses e objectivos. Como sou um amador nestas lides, e longe de mim ter a pretensão de opinion maker, verifico agora que a minha disponibilidade temporal para materializar em textos as opiniões que vou formando é inversamente proporcional à vontade de o fazer; e só o apelo de uma irreprimível atitude crítica me impele, mesmo que a espaços, a fixar em enunciados aquilo que gravita e circula no meu pensamento. Lamento não ter o privilégio de fazer negócio do ócio...
Claro que é muito cedo para fazer um balanço, mas há alguns dados e aspectos a que não consigo furtar-me de partilhar com os que têm a paciência de ler-me. E sendo apenas mais um dos que recentemente se vieram juntar a esta constelação de blogs em imparável crescimento, regozijo-me por haver algum eco dos escassos posts que elaborei, a julgar pelos comentários de leitores que conheço e outros cuja identidade desconheço, como também
através de reacções espontâneas que me chegam via mail, telemóvel ou presencialmente (no trabalho ou em grupo de amigos e família). É a existência desta ressonância que justifica e motiva este post.
i) Tudo começou por este ser um espaço simultaneamente gratuito (a crise em Portugal vai sendo paga pelos do costume!), acessível a todos (que não sejam analfabetos funcionais!) e democrático (mais do que muitos exemplos que a prática diária nos revela!), potenciador do exercício da liberdade de expressão e de opinião, seja qual for o quadrante ideológico-filosófico a que se pertença. Porém, nunca utilizarei este espaço como instrumento de conquista de influência e/ou arregimentação de sensibilidades e ideossincrasias, ou como arma de arremesso sedenta de vingança contra adversários do quotidiano existencial. Nada disso...
ii) Não quero transpor muralhas ou redutos, mas tão somente polemizar e suscitar a mobilização da controvérsia mediante a melhor argumentação que puder e souber produzir. Convido ao debate que alimenta a discussão que procura a plausível verdade e repudia a disputa obcecada por estratagemas de vitória baseadas em sofismas.
iii) Face aos tais ecos que me têm chegado, esclareço que não sou correia de transmissão de nenhuma corrente, grupo, movimento, partido, ideia, doutrina, instituição ou ortodoxia, e isso creio ser um dos sentidos patentes no nome que dei a este blog. Obviamente que não oblitero influências (ninguém honesto o fará), mas procuro ser autónomo nas reflexões e convicções que elaboro e no modo como retoricamente exponho o que penso e defendo, assumindo que posso incorrer em contradição, ambiguidade ou incongruência, considerações estas que dependem, necessariamente, das interpretações que me derem e a que estou sujeito.
iv) Admito igualmente que o processo de decisão que conduz à adopção de uma opinião resulta, pelo menos no meu caso, não apenas da análise racional e lógica de prós e contras, de custos e benefícios, como também de mecanismos emocionais (mas não necessariamente afectivos) a que a configuração neurobiológica de que sou feito impede de eximir-me. Não sou, por conseguinte, adepto do dualismo antropológico que separa corpo e mente.
v) Finalmente, e se, chegado aqui, ainda tenho alguém que me esteja a ler, assevero que procurarei sempre reduzir o ruído do que disser, embora tenhamos que aceitar a inevitável ambiguidade que está no âmago da linguagem natural (não escrevo recorrendo à univocidade de fórmulas matemáticas, símbolos químicos ou pautas musicais!). Daí que a ambiguidade em que possa incorrer seja involuntária; a não ser que, como recurso estilístico deliberado, procure comunicar um pensamento ou ideia que transcenda a simples literalidade (é isso que faz a metáfora e a ironia).
Funcionarão estes parâmetros como o meu livro de estilo e mostruário das minhas manifestas fraquezas, ou limitações, e presumíveis ou eventuais virtudes. E dando seguimento e conclusão ao primeiro parágrafo: agora que já iniciei este compromisso comigo mesmo, espero dar-lhe continuidade, apelando a quem me ler para que me comunique as suas visões convergentes e divergentes, os seus pontos de vista concordantes e discordantes. Não serei tão profícuo e proficiente como outros companheiros de argumentação, pois relembro que dei de caras com as dificuldades de ser um neófito blogger amador, acrescidas por não ser figura pública ou ter o prestígio e a notoriedade intelectuais que facilitam a fixação de auditório... Mas afinal, apenas pretendo ser consequente com a epígrafe deste blog e com o nome de baptismo que aceita e sugere a solidão gerada pelo inconformismo heterodoxo, contra a ambição da vaidade exibicionista ou procura de oportunidade clientelar.
Não mo pediram, mas com a vossa licença eu apresentei-me!

Etiquetas:

terça-feira, fevereiro 21, 2006

A lusa (de)formação educativa

Se eventualmente começou a ler este artigo de opinião, desde já previno que o seu conteúdo é susceptível de ferir a sensibilidade de todos aqueles que, pelo seu inócuo exercício de cidadania, incompetência, desleixo e acomodação profissionais e parasitismo social, minam o sistema educativo deste pobre país pobre, mais carente de espíritos habilitados e possuidores de uma sólida formação cognitiva de base do que de dinheiro ou subsídios...
Em virtude de, ao longo de cerca de uma década de docência, ter a oportunidade de leccionar o 10º ano, sou um espectador privilegiado do terramoto intelectual que está a varrer «as mulheres e os homens de amanhã» desta pátria lusa, cujo futuro cinzento me deixa apreensivo e angustiado. O défice nacional não é apenas de índole orçamental, mas sobretudo de competências cognitivas de um grande número dos nossos jovens, curiosa e paradoxalmente atrofiados e (de)formados por um sistema de ensino massificado e massificador (afinal elitista e reprodutor de assimetrias sócio-culturais) que, por sua vez, é nutrido por uma acéfala sociedade de consumo desenfreado, o que contraria o propósito democrático (ou utópico?) do ensino para todos e da igualdade de oportunidades.
O importante hoje é ter sucesso com o menor labor meritório possível; é desistir de realizar tarefas antes mesmo de as iniciar, vencidos pelo vislumbre do esforço que comportam; é fazer transparecer, em vez de um efectivo agir eficaz, consequente e consciente; é conjugar o máximo proveito com a mínima responsabilidade; é fomentar o incremento da mediocridade no âmbito de um utilitarismo incongruente e socialmente empobrecedor; é divinizar o efémero na espuma dos dias, pelo exacerbamento da atitude modular que tudo torna transitório e descartável, alimentando a voragem ígnea do ter, que brota da futilidade de modas passageiras e de idiossincrasias portáteis que alienam a idealidade de referências respeitadoras de uma autonomia identitária e existencial...
Perante uma tal cultura de interacção social, é confrangedor e preocupante assistirmos à hodierna descaracterização de um sistema educativo cada vez mais moribundo e que padece de maleitas diversas que, num quadro de prognóstico reservadíssimo, têm causas múltiplas e contornos tão complexos, subtis e inextrincáveis que, na caracterização da escola portuguesa actual, já não se sabe identificar o alfa e o ómega de tal novelo. Da ignorância, do desnorte e da irresponsabilidade políticas, à questionável coragem de mobilização e ridícula impotência e inconsequência das reivindicações sindicais; da ausência negligente e absentismo cívico de muitos encarregados de educação, ao desleixo conformista, acomodado e amedrontado por pressões administrativas (e outros coletes de forças...), que ampliam exponencialmente o anódino facilitismo militante dos docentes e a sua processual desmotivação; da gestão economicista de cifrões reduzidos (que é considerado despesa e não investimento!) de créditos horários apertados, que obriga muitas escolas a mercantilizar o seu espaço físico para eventos como casamentos e festividades afins, à impreparação técnica e pedagógica de tantos pomposamente designados auxiliares de acção educativa; da infantilização do ensino que menospreza e desvirtua o conhecimento, por influência e impertinente intromissão das patéticas e ineficazes «ciências (!?) da educação», ao indefinido zelo hierárquico, autoridade e autonomia ambíguas dos Conselhos Executivos; da pulverização de referências e de modelos de sentir, pensar e agir transmitidos aos jovens pelos 'media', à saturação e transformação conceptual do mercado de trabalho; da utilização revolucionária da tecnologia como mediadora de actos comunicativos, à pressão consumista que converte o supérfluo em necessidade vital...
Enfim, todo um cosmos caótico e desconcertado de razões (seria exaustivo enumerar todas, senão mesmo impossível fazê-lo) que concorrem para que o perfil terminal do aluno do Ensino Básico, segundo a Lei de Bases, não passe de um registo exangue e teórico de humor irónico, já que tal perfil é prontamente desmentido pela generalidade dos alunos de carne e osso que ingressam no Ensino Secundário.
Com efeito, é constrangedor constatar que a maior parte dos discentes que se matriculam no 10º ano não são portadores de hábitos de estudo regular nem de métodos de trabalho e de investigação autónomos; não sabem exprimir-se correctamente, quer em termos orais, quer em termos escritos, desconhecendo regras elementares de ortografia e de síntaxe, o que obsta à produção de textos coerentes, com sentido, com sequência e articulação de ideias e, por outro lado, e concomitantemente, não sabem ler nem interpretar correctamente textos e perguntas, por mais simples que sejam. Essas incompreensíveis lacunas estruturais impedem também que os alunos saibam mover-se nos meandros do raciocínio abstracto e ao nível intelectual da ponderação e explicação de hipóteses e suposições, bem como da análise e da síntese hermenêutica e heurística.
Além disso, um número surpreendentemente ingente dos alunos do Ensino Secundário denota uma resistência injustificável face a tarefas lectivas propostas, perante as quais evidenciam uma realização atamancada à pressa, com precipitação argumentativa e sem qualquer preocupação formal na elaboração e apresentação de "trabalhos". Há até alunos que não sabem estar numa sala de aula, revelando desconcentração, imaturidade comportamental e inaptidão e desinteresse pela aquisição de saber, mesmo quando, na condução das aprendizagens, as aulas são baseadas na não directividade e apelam para a iniciativa e activa participação dos discentes.
Ao invés do que pensam muitos "pedabobos", defendo que o rigor, o esforço, o empenho, a exigência e a seriedade devem ser os princípios que compõem a atmosfera axiológica que envolve a relação pedagógica, sem privilegiar o professor ou os alunos, mas antes implicando-os a ambos no exercício das suas competências e atribuições e tendo como mediação a dimensão cognitiva, constituindo, portanto, os conteúdos programáticos o vértice preponderante da tríade pedagógica e a razão de ser fundamental da escola, mormente no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Infelizmente, o facilitismo e laxismo reinantes, por razões múltiplas (algumas já identifiquei atrás) que vergonhosamente se escudam umas nas outras e com isso fazem a culpa morrer solteira, pervertem e subvertem o que deveria ser a perspectivação responsável e o enquadramento adequado de um sistema de ensino realmente formativo, instrutivo e propedêutico de uma efectiva integração na vida activa e numa sociedade culta composta por jovens cidadãos dotados de saber, de saber-fazer e de saber-estar.
Não se peça à escola que seja o remédio para todos os males sociais vigentes (entre os quais se destacam a desagregação e desestruturação familiares e a crónica mediocretização e apimbalhamento culturais), pois se ela já cumpre mal a sua tarefa!...
Traço este diagnóstico na esperança de que outras vozes críticas façam recrudescer um movimento de ideias e de pessoas que, não estando comprometidas com interesses eleitorais, sindicais, de índole pseudopsicopedagógica e não imitadoras do comportamento do avestruz, se mobilizem e remem contra a maré, erguendo a sua indignação à altura audível do ruído que ensurdece entropicamente o actual estado de coisas. Bem haja aos que aceitarem o repto e pensam pela sua cabeça!

Etiquetas:

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A montanha foi a Maomé

A sucessão de episódios do confronto civilizacional entre Ocidente e Oriente não pára de nos surpreender. Não me refiro à vitória inesperada do Hamas na Palestina, mas sim à publicação irresponsável e infeliz de uma dúzia de cartunes alusivos ao profeta Maomé feitos com o propósito deliberado de «desafiar, blasfemar e humilhar» o credo maometano, num claro abuso do direito de liberdade de expressão indiciador de uma atitude etnocêntrica e xenófoba. Um impronunciável jornal dinamarquês deu à estampa caricaturas fortemente depreciativas da personagem fundadora de uma das maiores religiões monoteístas, insinuando anacronicamente através delas, e isso é que é grave, que Maomé é responsável, mesmo que apenas moral, pelo terrorismo islâmico.
[Há três anos, o pasquim em apreço recusou publicar caricaturas realizadas por Christoffer Zieler sobre a ressurreição de Jesus, alegando serem ofensivas e sem piada!...]
Ninguém com bom senso e tolerante porá em causa o princípio de que a liberdade individual de opinião e de expressão é essencial e inalienável em qualquer sociedade que preze o progresso moral. Porém, o exercício efectivo e pleno da liberdade está associado ao exercício efectivo e pleno da responsabilidade, mormente se em causa está a salutar coexistência multiétnica, tão cara às sociedades contemporâneas marcadas pela rápida evolução dos transportes, das telecomunicações e da tecnologia em geral, o que acelera exponencialmente a mobilidade humana e assim incrementa o fenómeno migratório, uma das mais visíveis expressões dessa evolução.
O desenho caricatural é um instrumento privilegiado e artisticamente inteligente de promover através do humor as capacidades crítica e de reflexão, de problematização, de questionamento, recorrendo simultaneamente a um excesso intrinsecamente provocatório, mas aceitável, desde que dentro de coordenadas éticas devidamente acauteladas e que intuitivamente sabemos pertencerem à sátira e à ironia. Claro que há os imbecis e idiotas do costume, que confundem esses processos estilísticos com outros mais prosaicos, soezes e ad hominem, como sejam os da injúria ou os da blasfémia, ignorando ainda, como neste caso, que uma tal atitude pode espoletar reacções menos contidas e desproporcionadas, a ponto de originar consequências preocupantes nas quais se incluem o dar gratuitamente pretextos para a apropriação política da questão com o fito de anatemizar o ímpio inimigo ocidental. É isso que a Síria e o Irão estão a fazer, aproveitando para desse modo desviarem as atenções da objectiva magnitude das suas responsabilidades na degradação da vida política e social no Líbano e na contraproducente produção de armas nucleares, respectivamente.
Em consonância com os princípios e valores que reputo estimáveis, e perante a relatividade cultural que conhecemos, prefiro, apesar de tudo, os excessos possíveis em democracia, embora os lamente e condene, à asfixia ideológica e dialógica característica das ditaduras militares e teocráticas; não desejo passar um instante que seja da minha vida rodeado de pessoas que praticam a opressão machista hipostasiada sob a forma de burkas ou a opressão tirânica, maniqueista e monolítica que recorre à arrogância de fatwas. Contudo, tal como o cristianismo e o judaismo, o problema não é o islamismo, mas sim o fanatismo induzido pela apropriação manipulatória e indevida que certos dirigentes déspotas agravam e alimentam. Quem conhece um pouco a história das instituições encontrará mais semelhanças do que imagina entre, por exemplo, os fundamentalismos cristão e islâmico; e se repetições regista a História, uma é certamente o perigo elevadíssimo que o exercício do poder secular e temporal por parte de instituições depositárias de credos religiosos acarreta inevitavelmente. O actual extremismo de índole muçulmana não nos pode fazer esquecer a violenta prepotência das cruzadas templárias ou as aberrações hediondas que foram os hábitos inquisitoriais católicos, as SS hitlerianas em Auschwitz ou os modos de reivindicar usando o terror e o medo adoptados pela ETA ou pelo IRA. O mal não é um exclusivo dos que nos são culturalmente estranhos e diferentes. A promoção da fé é um lobo com pele de cordeiro e, tal como aconteceu com o pasquim que serviu de rastilho e comburente para mais esta polémica, vai-se por lã e acaba-se tosquiado se se põe em causa a pertinência ou plausibilidade da atitude fideísta.
É preciso ter a sensibilidade e sensatez suficientes para não cometer erros injustificáveis, e muito do ódio islâmico face ao infiel Ocidente radica na impoderada e/ou negligente hostilização que persiste em certo etnocentrismo das bandas de cá. E, de entre os capítulos dessa hostilização, um outro dos mais recentes foi a criminosa e hipócrita intervenção norte-americana no Iraque, na qual o terrorismo de estado do extremista cristão Bush nos ensinou a apagar incêndios com petróleo, incêndios esses que os Estados Unidos têm vindo a atear há décadas; e, o que é mais grave, com a vergonhosa cumplicidade e complacência da generalidade dos países ocidentais, e mesmo, ainda que indirectamente, da própria ONU. Os Estados Unidos violam unilateralmente o direito internacional, a Convenção de Genebra, os acordos de Quioto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e são sancionados com... a impunidade!
Procuremos ser imparciais nos juízos que fazemos e nas atitudes que adoptamos. O bem e o mal são conceitos complementares e não exclusivos ou incompatíveis, a vida colectiva e tudo o que ela comporta tem mais zonas de matizes e tonalidades cinzentas do que puro preto e puro branco. Do mundo árabe assimilámos aquisições culturais vantajosas e memoráveis, como parte da língua que falamos e o sistema de numeração que usamos todos os dias; é moçárabe o sangue que nos corre nas veias; conhecemos hoje o pensamento de Aristóteles graças à cultura árabe, a que devemos também o capital cognitivo legado por figuras como Averróis e Avicena.
Ignorar, entre outras coisas, que a religião é uma forma de purificação existencial e de purga psicológica e insistir em despertar sonos hegemónicos e tentações dogmáticas é um risco que já revelou ter trágicas consequências e que, por isso, deve ser evitado a todo o custo, não apenas como imperativo prudencial mas igualmente por respeito e por dever de tolerância no convívio multicultural. Ou seja, é caso para dizer que, devido a doze ignóbeis caricaturas, a montanha foi a Maomé e não pariu um rato...

Etiquetas:

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Carta aberta a Deus

Escrevo-te porque não existes. Afinal, o Pai Natal não existe e as crianças escrevem-lhe e perante ele se comprometem a ter um comportamento exemplar a troco de presentes e promessas de felicidade, sejam estes tangíveis ou não. Tu próprio és às vezes representado com profusas barbas brancas em certas ideossincrasias que com certeza não aprovarias, pois a figuração é uma limitação da eternidade que, por ser eterna, não se subordina ao domínio de Cronos: não conhece infâncias, adolescências, adultícias nem velhices. Não nos conseguimos descentrar do antropomorfismo em que nos impomos como referência incontornável (até os extraterrestres são morfologicamente representados com olhos, dedos, membros inferiores, orifícios sensoriais, todo um aparato orgânico onde também cabem as alergias e as substâncias que lhes são letais; e psicologicamente até têm aversões, dissonâncias cognitivas, fraquezas, ambições e os demais estados de ânimo que lhes conferem uma personalidade afável ou ameaçadora).
Escrevo-te porque não existes. Se existisses, nenhuma linha escrita no passado, por mãos esquizofrénicas, dementes, crédulas, amedrontadas e supersticiosas dos profetas e afins arautos e porta-vozes do delírio, faria sentido... A beleza das escrituras bíblicas, corânicas e de outras sagrações avulsas é a ficção romântica e o drama trágico de sucessivas impossibilidades materiais que, como contos de fadas, só têm concretude na esperança de um devir que, quanto mais próximo e iminente, mais adiável e atópico se revela. Nutres a tua força e poder de sugestão no desespero, na contingência, no fracasso, na ilusão, na mentira, nos despojos da razão e na desolação que se consolidam na finitude da morte. Se as autoridades deixassem de andar armadas e de estar investidas do poder sancionatório, deixaríamos de lhes obedecer. Assim aconteceria contigo. És por isso a fonte do medo e da cólera, rastilho de incontáveis fundamentalismos que apoiaste com a teu ignóbil passividade, a tua fria indiferença, o teu imutável silêncio. Como seria mais pacífico o mundo sem ti...
Escrevo-te porque não existes. Mesmo sob os mais diversos disfarces com que te apresentas, sejas Shiva, Zeus, Yaweh, Allah ou outro qualquer dos pseudónimos com que a desorientada imaginação onomástica te nomeie, mesmo assim não existes. Tal como as baterias, pilhas e geradores, também a fé é a energia que se esgotará um dia, nem que isso ocorra simultaneamente com a extinção da massa da grande estrela solar. Tem valor o que pouco dura, o instante fugaz, o fragmento isolado, o momento episódico. Depois disso sempre vem a inexorável insatisfação que constitui o impulso para continuar a prossecução de objectivos - a vida é um jogo que não se ganha nunca, sem vencedores, por mais pontos que se acumulem e por mais estratégias que se esbocem. À tua imagem e semelhança somos os derrotados de Tanatos na tua caixa de Pandora. A tua bondade é a tua maldade, é a violência e a ira com que sempre acabas por tirar o que dizes dar; a água mata a sede e mata por afogamento, o fogo aquece e carboniza, o ar oxigena e adoece até à sufocação, a terra sustenta e sustem e é coveira devoradora e abalo. O verso e o reverso, o yin e o yang, a cara e a coroa, a vida e a morte - as díades implacáveis com que em contradição te manifestas e em permanência demonstras a tua epifania miserável e perversa.
Escrevo-te porque não existes. Nem endereço ou apartado possuis, conforme atestado pelo conhecimento que em linguagem humana vamos obtendo e com o qual já rivalizamos contigo no poder criador e destruidor que humano também é. Nem mil satélites perscrutam qualquer indício de morada ou habitação tua, das proximidades da Terra aos confins indeterminados do universo; nem microscópios nem telescópios te dão visibilidade, cor, forma, altura, largura, profundidade ou textura. Não tens Lapónias terrenas onde residas. Se és invisível aos olhos de uma amiba, como poderias ter tu existência?
Escrevo-te porque não existes. Falas do mesmo modo do mesmo medo, sem variações ou intermitências. Não tens por isso originalidade nem te ajustas aos específicos contextos históricos, culturais, sociais e políticos; por isso vais perdendo fiéis e as tuas ancestrais mensagens e os teus obsoletos recados vão estando sujeitos à entropia que os deturpa, manipula, adultera e torna exangues. Reconhece que falhaste e perdeste, porque, se existisses, não terias podido perder nem falhar. Daí que se diz teres insondáveis desígnios - como se confunde ignorância e impotência com arbitrariedade... Se pés tivesses, seriam modelados pelo empenho e engenho dos oleiros para reproduzir o motivo da tua milenar imobilidade e imobilismo. «O mundo pula e avança» mas tu não sais do mesmo inóspito pedestal; contaminas os lugares em que te circunscreves com rituais ocos e ladaínhas inócuas; também tu és déspota e alimentas o engano da exploração do homem pelo homem, o que é de César é igualmente teu. Não te bastava consumir o que de mais importante o ser vivo tem, e ainda vendes a banha da cobra e não repudias o vil metal da tua celebração nem a abnegação dos sacrifícios vãos, dás falsa protecção e, no fim de contas, é em pó que indiferentemente transformas os que em ti investem. Mas isso eu percebo, porque és o tudo que afinal é nada e por isso estamos irmanados contigo na inevitabilidade do não-ser.
E é por isso que te escrevo. Porque serás sempre a mera sombra da virtual esperança. Quando ao morrer eu me consubstanciar a ti, continuarás acobardada na impossibilidade de encetar o mais sumário diálogo, porque aí, à tua imagem e semelhança, eu não terei então voz para falar nem circuitos nervosos para argumentar. Por isso te negamos em cada dia que vivemos; viver é sermos o teu avesso, é sermos deuses de vida e tu serás sempre sombra pálida e mortiça, és deus de morte e nas tuas mãos tens os sulcos profundos da gadanha que empunhas e te acompanha desde o Éden, desde que tens memória de ti. Mesmo aí descansa, pois no homem tens agora par: podias ter parado a tua obra da criação ao quinto dia, e só a tua vontade de adoração e culto, só a tua vaidade - sim, és um deus fátuo! - te levou a insuflar o pó da terra e a produzir o único vivente que é hostil a tudo o que criaste e que hoje concorre contigo. O escravo revoltou-se e é agora o senhor, o parasita, que desperdiça e esbanja o que conquistou, que não respeitou os teus direitos de propriedade, se existisses e os tivesses. Como pudeste ser tão desleixado e negligente na tua imperfeição? Se existisses, não o serias, pois terias que te coadunar com o inefável e ambíguo mistério da perfeição. O teu sopro revelou o teu hálito putrefacto de febre, malícia e sarna... És a má arte com que muitos pretendem reinventar a vida.
Esta epístola é o esquife com que te amaldiçoo, é o limite a que estás confinado. Sim, porque esta é uma missiva que não existe, pois uma missiva só existe quando é lida pelo destinatário. Nem tenhas a presunção e a arrogância, tão habituais e típicas em ti, de a confundir com uma oração! As tuas fórmulas não têm a eficácia nem o rigor dos sinais matemáticos e só se conjugam nos pretéritos verbais. És o que nunca chegaste a ser: uma promessa protelada de redenção e, como tal, não existes, pelo menos do lado de dentro da vida, a cujo lugar não pertences e em cujo lugar a omnisciência e omnipotência da tua suposta perfeição não passam de humanas possibilidades teóricas.
Subscrever-me-ia com amizade e frequentemente renová-la-ia. Porém, isto não é uma carta mas o monólogo sem correspondente que lhe responda. Faz como sempre fizeste e não abandones o teu cárcere nihilista que, da nossa parte e sem o sabermos, mimeticamente continuaremos a acompanhar-te.
Sinceramente, António Louro Miguel

Etiquetas:

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Ainda há sexo fraco?

Do mundo dito civilizado não nos chegam apenas más notícias. Contrariando uma tendência multissecular instituída pelos credos religiosos monoteistas predominantes (judaismo, cristianismo e islamismo) - grandes responsáveis pela difusão e assimilação cultural de valores patriarcais -, temos assistido a uma inversão do papel da mulher: não só a igualdade de género é cada vez mais um direito inquestionável e inalienável, consagrado juridicamente e testemunhado pela história contemporânea que regista uma progressiva emancipação feminina, como com frequência nos chegam notícias de países dos vários cantos do mundo relatando a conquista democrática do poder por parte de mulheres.
Que não se infira destas linhas que estou a ser paternalista ou que é minha convicção que elas são mais competentes e/ou eficientes do que eles, o que seria uma daquelas generalizações abusivas, demagógicas e falaciosas às quais, por imperativos de ordem intelectual e cognitiva, sou avesso. Não; este exercício opinativo decorre antes da satisfação em viver num tempo que tem insistido em atenuar uma situação discriminatória e de flagrante injustiça, na qual o peso demográfico de um género sexual não encontrava correspondência no exercício efectivo de uma cidadania plena que, entre outros aspectos, passa pela assunção a cargos de poder e de chefia (políticos, militares, empresariais). Os pratos da balança começam a ficar equilibrados, mesmo sabendo que casos há de mulheres que exercem ou tenham exercido mal, ou de forma incompetente, o poder de que estão ou estavam investidas. Mas esse é um problema de espécie e não de género...
Se fizessemos uma lista com os nomes de mulheres que contribuem hodiernamente e se empenham mediante uma vida política activa e influente nos seus respectivos países, talvez tivessemos finalmente razões para equacionar a possibilidade de deixar de assinalar anualmente o infelizmente necessário Dia Internacional da Mulher.
P.S. - Este texto foi inspirado na satisfação que senti pelas recentes eleições da chilena Michelle Bachelet, da liberiana Ellen Johnson-Sirleaf e da finlandesa Tarja Halonen.

Etiquetas:

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Alegre, candidato independente?

Começo por uma confidência: não votei em Manuel Alegre nas últimas eleições presidenciais. Uma das razões que concorreu para essa minha (não) decisão deve-se à minha interpretação crítica relativamente à ideia que este candidato quis passar segundo a qual a sua candidatura constituia uma alternativa de voto independente dos partidos políticos, o que consubstanciava a novidade de, finalmente, termos em eleições presidenciais em Portugal uma candidatura autónoma e um exercício de cidadania não comprometida com forças de poder.
Ora, um espectador mais atento não esquecerá que o seu nome chegou a ser proposto no interior do partido a que pertence para ser o candidato oficial do PS. Alegre hesitou, invocou a necessidade de ponderação profunda face à elevada responsabilidade do cargo de chefe de Estado, etc. Não sei se tal hesitação terá resultado em impasse e, assim, ter contribuido para que se começasse a pensar em outras alternativas e a mobilizarem-se influências no sentido de persuadir outras figuras socialistas, como Mário Soares.
Independentemente da importância efectiva disso no decurso dos acontecimentos, estou convicto de que a decisão oficial de apoio a Soares, tomada ainda durante o período de ponderação de Alegre, levou a direcção do PS a ajuizar que o problema do nome do candidato estaria resolvido, face ao peso político e histórico de Soares no seio do partido, e que tal decisão iria congregar pelo menos um consenso, mas nunca unanimidade (Soares havia, poucos meses antes, dito «Basta!» à actividade política), potenciador de uma campanha competitiva que afrontasse o «passeio pela Avenida da Liberdade» que a candidatura de Cavaco Silva configurava. Sócrates enganou-se e sobrestimou a indecisão inicial de Alegre que, aglutinando em torno de si um conjunto de figuras relevantes do PS (Alberto Martins, Helena Roseta, Maria de Belém Roseira, para só citar alguns), sentiu ter o apoio suficiente e necessário para ousar apresentar também a sua candidatura. Parecia que a eleição para eleger o secretário-geral do partido estava ainda bem fresca e assistiamos agora a uma sequela da mesma (Alegre concorreu com Sócrates e João Soares e obteve, se não me engano, 16%).
Se novidade pode ter havido nestas eleições presidenciais, foi a inédita apresentação de dois candidatos oriundos das fileiras do PS - não há fome que não dê em fartura... Alegre continuou filiado ao partido, não abdicou da sua posição de deputado da Assembleia da República, de que é até um dos membros mais antigos e, por conseguinte, um dos responsáveis pelas decisões políticas e de governação do PS (afirmou que, se fosse preciso, votaria o actual Orçamento de Estado ao lado do seu grupo parlamentar). E como se isso não bastasse, o candidato-poeta em momento algum neste processo eleitoral deixou de fazer parte da Comissão Nacional do PS. Onde está a independência ou o descomprometimento de Alegre? Como pode julgar ter sido o percursor de um movimento de cidadania, se teve consigo a mobilização de um sector significativo, mesmo que silencioso e discreto, do partido? Não terá esse facto facilitado muita coisa (angariação de fundos, signatários da candidatura e respectivas certificações, planificação de campanha) que, a não ser assim, inviabilizaria a sua vontade?
Portanto, a candidatura de Manuel Alegre alimentou uma falácia a que muitos eleitores não deram importância, se é que alguma vez interpretaram os factos como eu os interpreto.
Por último, Manuel Alegre não evitou a discursividade meramente retórica, destituída de conteúdo e substância, a que outros candidatos também reduziram as suas intervenções de campanha, com a agravante de, a propósito de certas matérias relevantes, Alegre debitar generalidades difusas reveladoras de ignorância sobre as mesmas e/ou ausência de posicionamento político claro e consequente.
P.S. (não PS) - i) Não esqueço que Alegre votou contra a extinção do serviço militar obrigatório; ii) Curioso, contrariando uma prática onomástica portuguesa, não adoptar o nome abreviado de Manuel Duarte ou Melo Duarte (mas isto já é mesquinhez da minha parte)...; iii) O milhão e tal de votos que obteve ainda não se extinguiu? Julgará Alegre que isso é estrutural e não apenas conjuntural? Cavaco Silva perdeu rotundamente em 1996...

Etiquetas:

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

SemQuorum foi o nome com que decidi baptizar este blog, singelo e modesto nas suas pretensões, e que radica na ideia de que o conteúdo argumentativo aqui veiculado é muito certamente minoritário no universo das opiniões possíveis acerca dos mais diversos temas. Conto com os comentários, sugestões, objecções e pontos de vista de todos quantos queiram partilhar comigo dois ou até três dedos de conversa... Que este seja um blog que, como tantos outros, sirva de espaço de tertúlia e contribua para enriquecer a blogosfera! Bem-haja pela atenção!