domingo, dezembro 31, 2006

3, 2, 1... 2007!

A todos os que visitam as páginas deste blogue, desejo um Feliz e Próspero Ano Novo, pleno de sucessos e, sobretudo, saúde, bem como vontade de democrática discussão e profícuas tertúlias! Um mundo melhor para todos!

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Poemário: Ímpar espiral

Ímpar espiral

Ano após ano, pisamos o mesmo eterno chão,
num alternado ciclo de alegrias e tristezas;
quebramos a monotonia do tempo, por convenção,
datamos os humanos dramas e heróicas grandezas,
e os sonhos não se vão perdendo, revestidos de ilusão.

Ano após ano, repetimos o constante balanço:
o deve e haver, a recorrente fórmula sabida;
imersos estamos na voragem de Cronos, sem descanso,
procurando sentidos de ser com as cores da vida,
ora indo por aberta via, ora por vereda proibida...

Ano após ano, destilamos o mesmo inerte e mórbido fel
- o negativo dos afectos em película fina de agrura;
nem só de amor cobrimos o ódio (como no quadro o pincel),
pois até a raiva e o rancor impelem à solidária desmesura,
esboçando o amplo desenho que não cabe em folha de papel.

Ano após ano, experimentamos o futuro como esperança:
projectos, desejos, anseios; aquele vital e onírico traço
- uns se realizam, muitos se adiam, ao ritmo da sempiterna dança.
Vertemos a seca lágrima e consolamo-nos com o húmido abraço;
e, no fim, o início retorna, regressa, e renova-se a confiança.

Ano após ano, inscrevemos na biografia o que nos cabe em sorte:
o corpo guarda as marcas, o passado enche-se de factos;
percorremos a repisada espiral que nos aproxima da morte.
Somos o que fazemos, na atitude que impulsiona os nossos actos,
aprendidos nos pontos cardeais em que se constrói o norte!


Esposende, 31 de Dezembro de 2006.

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God is an american

Estudos em matéria de crença religiosa revelaram que Estados Unidos e Brasil têm em comum o facto de 90% da população declarar acreditar em Deus. Os EUA são mesmo uma excepção entre os países industrializados: por exemplo, na Alemanha, há 53% da população com crença religiosa; e, na Suécia, o universo de crentes é apenas de 36%, o mais baixo do mundo dito desenvolvido.
Ora, se 90% dos estadunidenses crê na sagrada transcendência, 84% também acredita em milagres e, o que não é menos espantoso (ou preocupante?), 44% dos norte-americanos partilha da convicção criacionista acerca da génese universal, segundo a qual o Homem descende, de facto e directamente, de Adão e Eva, conforme relatado no bíblico livro do Génesis!

Talvez este dado ajude a compreender melhor por que estranhas razões os conterrâneos do Tio Sam invocam o divino beneplácito nos verdes dólares - que ostentam a inscrição "in god we trust" - e elegeram pela segunda vez um imbecil e inculto cowboy, e fervoroso cristão, para a Casa Branca - a tomada de posse faz-se, inclusivé, por juramento a Deus. Não haverá nos EUA um popular aforismo equivalente ao nosso: «Fia-te na virgem e não corras...»?

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sexta-feira, dezembro 29, 2006

Aqui era Portugal

Enquanto a força do mar exerce a erosão da costa portuguesa, como visivelmente acontece de Caminha a Vila Real de Santo António, sucessivos planos e projectos de combate a essa acção da natureza vão ficando na gaveta e não saem do papel: por exemplo, em 2003, ao Programa Finisterra (de requalificação e reordenamento do litoral) nunca foram disponibilizados os 125 milhões de euros orçamentados; e, até 2005, os nove Planos de Ordenamento da Orla Costeira não chegaram a executar um quarto da verba programada. E dos 45 milhões de euros do Orçamento de Estado de 2006 para as intervenções estratégicas de defesa da costa, apenas foram gastos 27 milhões.
Não é de estranhar, portanto, que o recuo de arribas nas zonas de costa rochosa, bem como o avanço do mar nas áreas de costa arenosa, façam de Portugal um país que vai naufragando: já não bastava a caótica e descontrolada pressão urbanística, e ainda há o desleixo e a inércia políticas no sector ambiental para agravar um problema melindroso e negligentemente adiado. Portugal é cada vez menos uma parte da Península Ibérica e cada vez mais uma extensão do Atlântico oceano...
Numa coisa o luso desgoverno do costume segue harmoniosamente este fenómeno natural, a saber, a gente que nos dirige não se coibe de ir metendo água!

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terça-feira, dezembro 26, 2006

Primum vivere deinde philosophare - 26

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Diz que é a "matriz cristã"...

Acabou mais uma quadra festiva alusiva ao Natal, época de inspiração sagrada e prática profana, pois a fé é mitigada em exuberância consumista - o 'menino jesus' deu o seu lugar de pueril benfeitor ao vetusto Pai Natal. O Natal serve, aliás, para fazer actualizar ainda mais as abissais assimetrias sociais entre ricos e pobres, ou, em mais ampla latitude, entre o hemisfério norte da abundância e o hemisfério sul da fome e da miséria. Para o ano repetem-se os gestos e os votos...
Enquanto isso, o Natal vai sendo sinónimo de prendas, compras, luzes, cânticos, néons, férias, gula, e vai minguando o número daqueles que ainda o vão associando a um garoto que nasceu em Belém da Judeia.
O Natal lembra também o modo como a religião, em geral, e o Cristianismo em particular, invadiram os domínios pessoais e interpessoais da vida, mesmo que de ateia convicção. Outro exemplo disso: discutiu-se, há um par de anos, a plausibilidade em incluir ou não uma referência preambular, no projecto de Constituição da União Europeia, à "matriz cristã" presente em dois mil anos de cultura ocidental. Por mim, louvo a racional sensatez e razoabilidade em impedir uma tal alusão, pois o Cristianismo fundou-se numa série de promessas inócuas e de esperanças vãs, nenhuma das quais concretizada (como não podia deixar de ser!): Jesus não voltou (coitado!); a iminência da chegada simultânea do 'fim do mundo' e do 'reino dos Céus' por ele anunciados, afinal, não se verificou; Israel não triunfou sobre os romanos (e vai para 6o anos de repetida e aflita vizinhança com palestinos); o mundo não está hoje melhor do que no século I (o paroxismo militar e bélico é contemporâneo) e pior ficou no século XXI sob a liderança de um cowboy texano, cristão e criacionista; e os homens não são, no nosso tempo, psicologicamente muito diferentes nos seus traços motivacionais, em relação aos seus antepassados.
E ainda queriam vincar num texto constitucional europeu, a rica herança de uma "matriz cristã", em nome da qual se escreveram páginas negras da história do velho continente... Longe parece estar o tempo em que o Homem aprenderá com os erros do passado!

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sábado, dezembro 23, 2006

Natal

Outro Natal.
Outra comprida noite
De consoada,
Fria,
Vazia,
Bonita só de ser imaginada.
Que fique dela, ao menos,
Mais um poema breve,
Recitado
Pela neve
A cair, ao de leve,
No telhado.


(Miguel Torga)

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quinta-feira, dezembro 21, 2006

Um presépio que nunca existiu

A festa essencial do Cristianismo é a Páscoa, sendo o Natal mais tardio e correspondendo a uma necessidade de seguir eventos cultuais pagãos relacionados com os ciclos das estações e do Sol. O nascimento de Yehoshua bar Yossef, entre nós conhecido por Jesus, é apenas referido nos evangelhos de Mateus e de Lucas, ambos em breves trechos e com cómicas ambiguidades e contradições, e com enormes incorrecções relativas quer a factos históricos, quer aos costumes palestinos do século I. Tais aspectos nem a mais ingénua credulidade pode ignorar. Outros textos, mas apócrifos, não canónicos (como o Protoevangelho de Tiago ou o Evangelho de Infância de Tomé) também contêm curiosas efabulações da natividade.
Mateus e Lucas exploraram um filão de credulidade com intuitos diversos: o primeiro, provavelmente judeu, preocupou-se em encontrar nas Escrituras profecias e precedentes aplicáveis a Jesus como Messias, mesmo inventando ele próprio factos que se adequassem a esse desiderato, com o fito de equiparar Jesus aos patriarcas e profetas judeus da Torah (como Moisés); já Lucas, um gentio, não judeu, demandou no sentido de colocar convenientemente o 'nazareno' a par dos deuses pagãos e heróis semidivinos que proliferavam no panteão das culturas sob a alçada do Império Romano (Perseu, Mitra, Adónis, Ísis, Rómulo, Júlio César, Alexandre Magno, etc.).
O autor do evangelho de Mateus tê-lo-á escrito na Ásia Menor ou no Egipto; o autor do evangelho de Lucas tê-lo-á escrito em Roma - ambos no último quarto do século I. Por isso, não surpreende que Mateus fale numa estrela particular, em camelos e em reis magos; e Lucas em pastores a guardar os rebanhos no campo e à noite (em pleno Inverno? Ou morreriam de hipotermia ou Jesus não nasceu a 25 de Dezembro, portanto). Não há aqui vestígios de cáfilas e demais elementos e personagens exóticos saídos da delirante e mentirosa imaginação de Mateus. Alguém escrevesse no gélido pólo, e teríamos iglos e pinguins na história! Nem sequer Lucas refere uma qualquer matança de criancinhas ordenada por Herodes, a qual, espantosamente, nenhum documento histórico registou...
Sobre os magos vindos da Pérsia, por que queriam eles adorar o "rei dos judeus que acabava de nascer", se os reis não eram adorados mas apenas os deuses? A ideia de que Jesus seria Deus é em duas ou três décadas posterior à sua morte (50 ou 60 anos após os factos narrados por Mateus, que projecta para o passado e para sacerdotes gentios o prenúncio do cariz divino do frágil rebento). O número e o nome dos reis magos são inexistentes nos evangelhos: o Papa Leão, o Grande, decidiu que eram três; e foi Tertuliano, doutor da Igreja no séc. III, que os considerou 'reis' - simples, fácil e dá milhões de crentes!
A data de 25 de Dezembro para celebrar o nascituro nada tem de consagrada espiritualidade, mas antes de despotismo político: deve-se ao Imperador Constantino, facínora e sanguinário benemérito e benfeitor do catolicismo, seguidor e sacerdote do Sol invictus, sucedâneo de Mitra e que festejava o seu dia nessa data (o natale solis invicti), coincidente com o solstício do Inverno. Foi o mesmo Constantino, cruel tirano, que também impôs no primeiro Concílio cristão, em Niceia (em 325), a unidade na interpretação da mensagem cristológica, cujo carácter divino foi aí coercivamente votado - Jesus foi o primeiro deus democraticamente eleito!
A julgar pelas indicações evangélicas, a probabilidade de Yehoshua ter nascido em 25 de Dezembro é a igual à probabilidade de nevar em Portugal em 25 de Julho!
Muitos outros profanos interesses e teológicas conveniências estão na base destas estórias falsas, incongruentes e mal contadas que erigem as religiões e que, de tão repetidas e difundidas, passaram, e ainda passam, por verdadeiras. É o caso do Natal e do presépio.
Há coisas fantásticas, não há?

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quarta-feira, dezembro 20, 2006

O caso 'Apito Salgado' ou os males da Justiça

É duvidoso que Portugal seja, plenamente, um «estado de direito», quando a opinião pública tem da Justiça uma crua imagem de ineficiência, parcialidade e confrangedora morosidade. Os julgamentos de casos amontoam-se e arrastam-se ao longo de penosos anos, acabando muitas vezes com o arquivamento dos mesmos (caso Camarate) ou em sentenças inócuas (casos Entre-os-Rios e Ferreira Torres) que ferem o exigível princípio de sancionar a inequívoca e comprovada ilicitude, morrendo a culpa solteira.
O poder dos média é inquestionável e é graças a ele que a mediatização de processos judiciais conduz a uma forma de pressão para, pelo menos, dar mais celeridade processual aos julgamentos. Por outro lado, a dimensão mediática dada a alguns casos contribui para os tirar do marasmo e hermetismo a que a máquina judiciária parece remetê-los. Os casos Casa Pia e Apito Dourado são prova disso, agravados pela complexidade de instâncias, testemunhas, causídicos e arguidos, numa teia tal, que leva a que o emaranhado labiríntico de depoimentos, recursos e sessões produzam um novelo inextrincável que se enreda sobre si próprio.
A justiça portuguesa funciona mal, não tem meios; as leis são muitas vezes omissas, ininteligíveis ou ambíguas e o interesse político dos partidos do governo em não combater a corrupção são males facilmente diagnosticáveis que concorrem para o atraso do país, pois daí advêm também consequências sociais e económicas. Foi preciso que a publicação de um livro de cariz delator desse novo impulso ao processo Apito Dourado - transformando-o mais num "Apito Salgado" - que, conjugado com a mudança de Procurador-Geral, demonstrasse à saciedade como a inoperância judiciária assenta sobretudo na ausência de vontade política e na falta de competência dos actores responsáveis pelo sector da justiça. Souto Moura foi o rosto da estagnação e irresponsabilidade e ficou mal na fotografia: Carolina Salgado não escreveu (ou alguém por ela), em rigor, algo que não se soubesse e/ou suspeitasse; e Maria José Morgado já existia e estava encostada na prateleira...
Mas, será que haverá resultados, ou Portugal vai converter-se numa imensa Felgueiras?

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terça-feira, dezembro 19, 2006

Planeta azul?

Tiveram o infortúnio de ter por habitat o rio Yangtze, o maior da China. Mas a pesca intensiva, o aumento do tráfego fluvial, a construção de gigantescas barragens e as incessantes descargas poluentes de resíduos industriais foram factores mortais que concorreram para tornar irreversível a diminuição de exemplares vivos. Em 1997 ainda conseguiam ser treze; agora... extinguiram-se!
O golfinho branco, ou baiji, existia há 20 milhões de anos. Porém, o homem pôs fim a esta longevidade que, em consequência dos efeitos da sua interferência irresponsável e criminosa no empobrecimento da biodiversidade, certamente ele não atingirá como espécie, dado o modo como cruelmente parasita e destrói os ecossistemas terrestres. Aliás, o Homo sapiens parece ter-se incompatibilizado com a natureza deste planeta, convertendo-se numa entidade estranha ao equilíbrio ecológico da Terra.
O baiji, dócil e gracioso representante da terna e adorável espécie de delfins, terá sido o primeiro mamífero aquático a ser extinto em consequência das actividades humanas.
Procuramos Marte e a Lua, sem cuidar da casa que é, de facto, a nossa. Tornámos a Terra um lugar inóspito até para nós próprios; somos uma aberração suicida que, não duvido, caminho em direcção ao abismo, submetido pela gananciosa voragem da ambição de riqueza. Também o homem se extinguirá. Pena que, para o baiji, já seja demasiado tarde...

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segunda-feira, dezembro 18, 2006

A cor e o preço da castidade

Progressivamente, instalou-se nas relações interpessoais a tácita ideia de que tudo pode ser negociável, em muitos casos ao arrepio de princípios ético-morais que se julgavam inquestionáveis.
Este intróito ocorreu-me a propósito de uma situação que teve lugar na Roménia, onde um padre católico, Petrica Bratu, de 37 anos (que mais parecem 73!), adoptou uma resolução no mínimo curiosa e reveladora do tipo de instituição comercial que, ab origine, é a Igreja de Roma. Com efeito, esse abençoado pároco de vaticana confissão decidiu multar as noivas que, por contrariarem a casta virgindade pré-nupcial, se apresentem diante do altar para casarem. Ou seja, sofrem estas devassas pecadoras uma coima de 15 euros se viverem em anterior concubinato doméstico, ou 88 euros se antes do casamento já tiverem parido. Consta que estas mulheres, que experimentaram os prazeres da carne e não fizeram fálico jejum, poderão, paga a multa, ir de branco vestido. O dinheiro não faz tudo, mas pode muito, mesmo em matérias de espírito!
Parece que os machos estão isentos desta prospecção, talvez por não terem hímen roto nem ovário usado...
Muitas são as questões que a presente atitude suscita. Porém, e independentemente das respostas que se possam aduzir, uma coisa continua incontornável com a abundância de semelhantes exemplos de empírica teologia: se a imbecilidade e o ridículo matassem, a Igreja Católica entrava em extinção!

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sexta-feira, dezembro 15, 2006

Primum vivere deinde philosophare - 25

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A arrogante impertinência do "não"

Na apresentação, a semana passada, da plataforma Não Obrigado, contra o aborto, foi dado a conhecer o resultado de uma sondagem realizada pela Universidade Católica (!). Embora os números apurados não sejam difíceis de adivinhar, há duas conclusões relevantes de tão proveitoso trabalho.
Assim, e num universo de 1500 entrevistados, 54% considera que a vida humana começa desde o momento da concepção e 21% considera que a vida humana começa desde o momento em que bate o coração. Não sabia que tais matérias, tão técnicas e especializadas, se resolvem mediante inquéritos de opinião! Pena não se lhes ter perguntado também sobre o que acham da influência dos bifidus activos no funcionamento intestinal; ou o que acham acerca da existência de água em Marte...
Segunda conclusão, não tão brilhante como a anterior: numa pergunta exclusivamente dirigida a mulheres (certamente em respeito pelos artigos iniciais da Constituição da República!), 76% disse que queriam ser ajudadas e apoiadas a poder ter o bebé, se estivessem grávidas e atravessassem dificuldades ou dúvidas. Por um lado, dá a impressão que, nestes casos, todas, sem excepção, iriam ser ajudadas e que meios logísticos abundam e as leis do trabalho são flexíveis ou os salários condignos... Mas, por outro, fica a saber-se que, afinal, ainda há quase 25% (por extensão da amostra, apenas alguns milhares de mulheres - coisa pouca!) de senhoras que não querem subordinar o seu corpo ao preconceito e convicção moral da maioria... Como pode haver quem defenda o "não" à descriminalização da IVG, se pelo menos uma em cada quatro mulheres segue ditames diferentes em questões de consciência e liberdade, que só a elas dizem respeito?

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quinta-feira, dezembro 14, 2006

Primum vivere deinde philosophare - 24

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O amigo americano

Quem tem amigos destes, não precisa de inimigos. Este é o aforismo que tão bem caracteriza e define o modo como os Estados Unidos se impõem arrogantemente ao resto do mundo, sobretudo após o desmoronar do bloco soviético. E são inúmeros os exemplos, ao longo da história recente, de prepotência e arbitrariedade com que a política externa estadunidense exerce a sua dominação e coerciva influência.
A nível interno, é fácil constatar o gradual colapso dos "american way of life" e "american dream", construído e alicerçado sobre um capitalismo selvagem e uma economia de mercado patrocinada por um proteccionismo de Estado que desvirtua a essência de uma competição económica justa e igualitária. Tal paradigma reduziu a cacos as tímidas políticas sociais que ainda subsistiam. Aliás, não é de estranhar a afirmação de uma prima da Secretária de Estado Connie Rice (citada por Peter Stothard no The Times, há uns quatro meses), em que diz que "ainda metemos os rapazes pobres nas cadeias pelas mesmas razões por que damos apoio psicológico aos rapazes de classe média". A própria origem sócio-económica dos soldados dos EUA que estão no Iraque desfaz as dúvidas quanto à persistente e incessante discriminação social no interior dos states.
A nível externo, o que se passa no Iraque ou no conflito israelo-palestino são apenas dois exemplos dos muitos com que o polícia do mundo tem vindo a minar os fundamentos de uma harmoniosa, justa e pacífica ordem mundial. Graças a Bush e seus três antecessores, o mundo está hoje bem mais perigoso e a pax americana nunca foi antes questionada com o vigor actual, pelos seus aliados e não só, ao ponto de se fazerem sentir já efeitos práticos disso, designadamente na América Latina, tradicional quintal dos EUA: recentes eleições alimentaram um demagógico populismo reactivo e reforçaram a demarcação do vizinho do norte por parte da Venezuela, Equador, Bolívia, Nicarágua, Chile e Brasil (embora os dois últimos mais moderadamente). Cuba deixou de estar isolada...
Finalmente, e como remate desta dissertação, lembro as palavras de Smedeley Darlington Butler, general norte-americano que, num excerto da sua autobiografia traduzida há cerca de onze anos pelo Le Monde Diplomatique, escreveu:
"Passei 33 anos e quatro meses em serviço activo na força militar de maior mobilidade do nosso país: o corpo de marines. Ocupei todos os postos de oficial, de alferes a general de divisão, e durante esse período consagrei a maior parte do meu tempo a servir o grande capital, Wall Street e os banqueiros, como homem de mão de alto gabarito. Resumindo, fui um malfeitor a soldo do capitalismo. Foi assim que contribuí, em 1914, para fazer do México (...) um lugar seguro para os interesses petrolíferos americanos. Ajudei o Haiti e Cuba a tornarem-se lugares suficientemente respeitáveis para que os homens do National City Bank fossem lá ganhar dinheiro. Em 1901-1912, na Nicarágua, participei na depuração em benefício do banco internacional Brown Brothers. Em 1916, fiz chegar a luz à República Dominicana por conta dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1913, criei as condições para que as Honduras acolhessem as companhias frutícolas dos Estados Unidos. Na China, em 1927, velei para que a Standard Oil se pudesse ocupar das suas actividades sem ser importunada. (...) [Al Capone] apenas podia praticar o seu banditismo em três bairros da cidade, enquanto nós, os marines, operávamos em três continentes."
Parece que, infelizmente, o oportunista amigo americano resiste à prova do tempo e teima em continuar nesses e noutros palcos e cenários, dos quais depende a exibição pública da sua hegemonia. As palavras do general Butler não perderam, portanto, actualidade. Até quando?
É que, com amigos destes, quem precisa de inimigos?

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quarta-feira, dezembro 13, 2006

Primum vivere deinde philosophare - 23

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terça-feira, dezembro 12, 2006

Selo sem parecê-lo!

Sócrates queria um selo com a sua foto para deixar para a posteridade o seu mandato no Governo deste país que está de tanga. Feita a sua vontade, os selos são criados, impressos e vendidos. O nosso Primeiro-Ministro fica radiante!
Porém, em poucos dias, ele fica furioso ao ouvir reclamações de que o selo não adere aos envelopes. O Primeiro-Ministro convoca os responsáveis e ordena que investiguem o assunto. Eles pesquisam as agências dos Correios de todo o país e relatam o problema.
Findos os trabalhos de exaustiva pesquisa, o relatório foi concludente:
"Não há nada de errado com a qualidade dos selos. O problema é que o povo está a cuspir no lado errado."
Post Scriptum - Este post tem o selo da querida amiga Otília Reisinho, do blog "O Pior e o Melhor de Matosinhos", cujo link figura aqui ao lado. Obrigado pelo curioso mail!

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segunda-feira, dezembro 11, 2006

A "sinosite" do padre

Em Oliveira do Bairro, os sinos da Igreja Matriz, situada no centro da cidade, tocam de 30 em 30 minutos e, diariamente, à meia-noite, qual atroadora "sinosite", fazem soar as inevitáveis doze badaladas. Quem sofrer de insónias pode não contar carneirinhos, mas tem a sorte de poder contar as sonoras pancadas que emanam soltas e ruidosas do sagrado templo. Porém, o pior é aos domingos às sete da manhã, quando o badalo desprende... 60 (!) badaladas a lembrar indiferentemente a católicos, não católicos, agnósticos e ateus, que é dia da santa missa.
Ora, o padre de Oliveira do Bairro, com o sugestivo e adequado nome de António Cruz, manifestou admiração e surpresa com alguma contestação que começa a fazer-se sentir entre alguns moradores, lembrando que os sinos já lá estão a debitar as horas e minutos desde 1965 e, como remate de tão pertinente argumento cronológico, asseverou que "parece que os símbolos da igreja ainda incomodam muita gente"!...
Esta é mais uma prova de como uma instituição que prega, presumo, o respeito e a tolerância, não só não é consequente e consistente com a mensagem que transmite, como possui no seu seio membros que denunciam ter a nostalgia de tempos inquisitoriais, revelando uma absoluta e injustificável falta de decência, vergonha e civismo. E não é que aquela paroquial criatura ainda afirma que, para alterar o sistema de badaladas do relógio, não basta reclamar, pois tal mudança custa dinheiro!? Haverá maior insulto ao bom senso e à pobreza?
Na Igreja Católica, o reconhecimento de conquistas civilizacionais tarda muitas vezes e a riqueza material que possui é proporcional às pobrezas ritual e de espírito. Perdoai-lhes, Deus (que não precisais de sinos), que eles não sabem o que dizem ou fazem!

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Chile de luto?

Morreu Pinochet e, por isso, mais uma vez, há crimes que ficam sem castigo. A impunidade continua a ser o privilégio dos poderosos.
Os traídos e humilhados não lamentam a morte dos seus opressores, pelo que não é o Chile que está de luto, mas os Estados Unidos! Se o Inferno se consumasse, tinha ontem recebido mais um ilustre inquilino...

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quinta-feira, dezembro 07, 2006

Primum vivere deinde philosophare - 22

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Referendar a despenalização do aborto

É com profunda e inabalável convicção que me associo à iniciativa do Daniel Oliveira, no seu blogue Arrastão.

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Gramática com vida

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com aspecto plural e alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. O artigo era bem definido, feminino, singular. Era ainda novinha, mas comum, maravilhoso, predicado nominal. Era ingénua, ilábica, um pouco átona; um pouco ao contrário dele, que era um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanático por leituras e filmes ortográficos. O substantivo até gostou daquela situação: os dois, sozinhos, naquele lugar, sem ninguém a ver nem ouvir. E, sem perder a oportunidade, começou a insinuar-se, a perguntar, a conversar. O artigo feminino deixou as reticências de lado e permitiu-lhe esse pequeno índice...
De repente, o elevador pára, só com os dois lá dentro. Óptimo!, pensou o substantivo; mais um bom motivo para provocar alguns sinónimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeçou a movimentar-se. Só que, em vez de descer, sobe e pára exactamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela no seu aposento.
Ligou o fonema e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, suave e relaxante. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram a conversar, sentados num vocativo, quando ele recomeçou a insinuar-se. Ela foi deixando, ele foi usando o seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo. Todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo directo. Começaram a aproximar-se, ela tremendo de vocabulário e ele sentindo o seu ditongo crescente. Abraçaram-se, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois.
Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula. Ele não perdeu o ritmo e sugeriu-lhe que ela lhe soletrasse no seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, pois estava totalmente oxítona às vontades dele e foram para o comum de dois géneros. Ela, totalmente voz passiva. Ele, completamente voz activa. Entre beijos, carícias, parónimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais. Ficaram uns minutos nessa próclise e ele, com todo o seu predicativo do objecto, tomava a iniciativa. Estavam assim, na posição de primeira e segunda pessoas do singular. Ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular.
Nisto, a porta abriu-se repentinamente; era o verbo auxiliar do edifício! Ele tinha percebido tudo e entrou logo a dar conjunções e adjectivos aos dois, os quais se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas, ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tónica, ou melhor, subtónica, o verbo auxiliar logo diminuiu os seus advérbios e declarou a sua vontade de se tornar particípio na história. Os dois olharam-se e viram que isso era preferível a uma metáfora por todo o edifício. Que loucura, meu Deus! Aquilo não era nem comparativo; era um superlativo absoluto!
Foi-se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado aos seus objectos. Foi-se chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo e propondo claramente uma mesóclise-a-trois. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria no gerúndio do substantivo e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.
O substantivo, vendo que poderia transformar-se num artigo indefinido depois dessa situação e pensando no seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história. Agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, atirou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.
P.S. - Obrigado à minha querida amiga Ana Cristina Santos por este texto fantástico que me enviou por mail!

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quarta-feira, dezembro 06, 2006

Desordem mundial em inquérito virtual

Recebi por mail o seguinte texto e não resisto a editá-lo aqui. O seu conteúdo não é, seguramente, verídico; mas o subtexto para que remete não andará muito longe da verdade. Ei-lo então:
A ONU resolveu fazer uma grande pesquisa mundial. A pergunta era: "Por favor, diga honestamente qual a sua opinião sobre a escassez de alimentos no resto do mundo".
O resultado foi desastroso, um autêntico fracasso! Isto porque: os europeus setentrionais não entenderam o que significa "escassez"; os africanos não sabiam o que era "alimentos"; os espanhóis não sabiam o significado de "por favor"; os norte-americanos perguntaram o significado de "o resto do mundo"; os cubanos estranharam e pediram maiores explicações sobre “opinião"; e o parlamento português ainda está a debater o que significa "diga honestamente"...

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terça-feira, dezembro 05, 2006

Legendar o silêncio icónico (22)

French kissing com sabor a presunto!
(sem tabus judeo-islâmicos...)

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segunda-feira, dezembro 04, 2006

Bentanias

Contrariando os que vaticinavam uma visita atribulada e arriscada à Turquia, o Papa Bento XVI saiu incólume do país de Atatürk e até mais refrigerado de ecumenismo e apaziguador no discurso. Isso talvez seja resultado, primeiro, da omnipotente autoridade divina que, com a ajuda de omnipresentes guarda-costas e segurança, lhe garantiu a inevitável protecção; e, segundo, de uma súbita iluminação celeste que lhe terá inspirado a inflexão de ideias em relação à infeliz prelecção de Ratisbona, há cerca de quatro meses, em que blasfemou contra Maomé.
Deus parece adormecer de quando em vez, mas acaba sempre por escrever direito através das sinuosas linhas com que nos confunde com os seus inacessíveis e prodigiosos santos desígnios. E não se diga que o bispo alemão de Roma é perito em dar uma no cravo e outra na ferradura, pois, como Santidade que é, está sob a graça do divino sopro que lhe confere infalibilidade (é o único humano a ter esse privilégio), e Deus não se engana, ou pelo menos assim se deve pensar... Tem mesmo graça!
Todavia, e abstraindo-nos de teológicos dogmatismos, alguém deve andar chocado e discordante com o papal desnorte retórico; alguém que, há dois anos, defendeu a matriz cristã da cultura europeia como premissa para implicitamente sustentar a rejeição da Turquia como putativo membro da União Europeia; alguém que lamentou os encontros de ecuménica oração protagonizados por João Paulo II; alguém que, como Professor de Teologia nos idos de 60, se habilitou a ser excomungado por ter arejadas opiniões pouco católicas. Esse alguém é... o cardeal Ratzinger!
Estamos perante um caso de dupla personalidade e de hábil arte camaleónica. Ou será doença bipolar?

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